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sexta-feira, 6 de julho de 2018

A Escolha do Jorge: "Minha Ántonia"

Pairava na página diante de mim, qual fotografia, e por baixo lia-se a melancólica frase: 'Optima dies... prima fugit' [Os melhores dias são os primeiros a fugir]." (p. 179)
A edição de “Minha Ántonia” da escritora estadunidense Willa Cather (1873-1947) coincide precisamente com os cem anos em que a mais emblemática das suas obras foi publicada, numa altura em que a Relógio d’Água decidiu retomar a edição das suas obras, primeiro com “O Meu Inimigo Mortal” após uma interrupção de mais de uma década com a edição de “Uma Mulher Perdida”.
Lemos as primeiras páginas desta obra e rapidamente damos conta que mergulhamos no universo da grande literatura e do melhor que o século XX produziu nesta matéria.
A narrativa não nos dá conta com rigor do período em que decorre, sendo que podemos concluir que abrangerá desde o final do século XIX, coincidindo com a imigração em massa de europeus que procuram a sua sorte no país da abundância e dos sonhos, até às vésperas da 1ª Guerra Mundial, ainda que a narrativa, no final, se perceba que passou dos anos 20. Não é que seja um dado importante, contudo, permite-nos o enquadramento histórico até para compreender o desenvolvimento socioeconómico da região onde se desenrola a maior parte da narrativa, em especial, o estado do Nebrasca.
Curiosamente, “Minha Ántonia”, no que concerne a aspectos de natureza socioeconómica tem ecos de “Os Frutos da Terra” do norueguês Knut Hamsun, publicado em 1917, valendo-lhe o Nobel de literatura três anos mais tarde. A ideia de colonizar uma região vazia em que os primeiros colonos se dedicam ao que a terra e os animais lhes dão é o ponto em comum nestas duas obras.
A narrativa inicia com a chegada de uma grande família oriunda da Boémia, os Shimerda, que tentam a sua sorte junto da grande colónia de norugueses já instalada na região, e também de suecos, embora menos expressivo. Os primeiros capítulos dão-nos conta das dificuldades e desafios que esta família de boémios tem na América. São igualmente descritos a ligação da comunidade entre si e o seu empenho no que concerne ao espírito de entreajuda a esta nova família que vive miseravelmente, havendo, pois, o desejo, de que todos possam beneficiar da terra dos sonhos para que todos possam ser felizes.
É curioso que neste romance de Willa Cather não podemos dizer que existem os oponentes, aqueles personagens que dificultam a vida a terceiros, é, pois, um romance que ao lermos os primeiros capítulos nos questionamos qual é o sentido, ou simplesmente que caminho será este. E a resposta é precisamente a vida, a vida que corre ao sabor das estações do ano, as rotinas domésticas e o trabalho do campo, mas também a ligação ou dependência à cidade.
Jim Burden é o narrador deste fulguroso romance de Willa Cather e é o próprio que nos dá conta de todas as alterações que têm lugar em Black Hawk, no Nebrasca, o pequeno lugar onde decorre a narrativa. Jim Burden é uma criança e vive com os avós na sequência de ter perdido os pais.
Jim faz-nos o relato das brincadeiras, das rotinas, das histórias desta nova família de estrangeiros, e claro, de Ántonia, uma menina um pouco mais velha que ele, mas que ambos passam a desenvolver uma enorme amizade que se confunde com amor, prolongando-se pela vida fora.
É através de Jim que percebemos que o pai de Ántonia é o elo de ligação à terra natal através das histórias que conta e da importância da música. A língua checa que nunca deixam de falar entre si ligam-nos fervorosamente como se fosse o único ponto de contacto com a distante Europa e os seus costumes.
A trágica morte do sr. Shimerda aproxima ainda mais Jim e Ántonia e a angústia face à perda referencial leva Ántonia a questionar se alguma vez o espírito do pai alguma vez voltará a encontrar paz e sentir-se feliz.
"- Isto faz-me sentir saudades, Jimmy, esta flor, este cheiro — disse ela calmamente. — Temos muitas flores destas na minha terra. Cresciam imenso no nosso jardim e o meu papá tinha um banco e uma mesa verdes por baixo das copas. No verão, quando estavam em flor, costumava sentar-se com o amigo que tocava trombone. Quando era pequena, ia até lá para os ouvir conversar; conversas bonitas, como nunca ouvi neste país.
- E conversavam sobre o quê? – indaguei.
- Ela suspirou e abanou a cabeça.
- Oh, sei lá! Sobre música, sobre a floresta, e sobre Deus, e também sobre quando eram novos. – Virou-se subitamente para mim e olhou-me nos olhos. – Achas que o espírito do meu pai consegue regressar a esses lugares, Jimmy?” (p. 158)
Os anos da adolescência vão passando e com ela surge o despertar para a sexualidade e tudo o que é diferente face ao que é tido como comum ou paradigma é bastante apelativo. Neste caso, os rapazes da aldeia sentiam-se profundamente enfeitiçados com as raparigas estrangeiras que exercitavam o corpo graças às tarefas domésticas, nos campos e com os animais, em oposição às raparigas locais que não tinham de trabalhar para ajudar as famílias.
Os bailes na cidade começam a ser o ponto de encontro dos jovens das imediações e Ántonia desperta paixões graças à sua rara beleza, mas também pela sua personalidade forte, marcante.
Sempre próximos e numa relação sempre imaculada, Jim Burden e Ántonia Shimerda acabaram por nunca concretizar o afecto que nutriam um pelo outro ainda que reconhecessem que tenham tido a melhor das infâncias e a melhor das amizades ao sabor do vento como parte integrante da natureza.
Anos mais tarde, quando se reencontram, e cada um com uma vida diferente, há um dos mais belos diálogos do romance, que denotam a ideia de amor para sempre e que há pessoas que passaram pela nossa vida que nos marcaram e marcarão até ao fim dos tempos. Aqui poderíamos apelar à ideia de homem e mulher ideais, ou até mesmo de um casamento perfeito e que o leitor vê-se a desejar a cada momento que se concretize e depois a questionar por que razão não se concretiza esta união. É como na vida. Acontece quando tem de acontecer e não acontece porque também não sabemos explicar os mistérios insondáveis da vida ou do destino. Talvez seja isso.
“- Sabes, Ántonia, desde que me fui embora que penso mais em ti do que em qualquer outra pessoa daqui. Tenho pena que não tenhas sido minha namorada, ou esposa, ou mesmo mãe ou irmã; qualquer coisa que uma mulher possa ser para um homem. A ideia de ti faz parte da minha mente; influencias as minhas tendências e aversões, todos os meus gostos, centenas de vezes sem que eu me aperceba disso. És realmente uma parte de mim.
Ela virou os seus olhos luminosos e crédulos na minha direção e estes encheram-se lentamente de lágrimas.
- Como é isso possível, quando conheces tanta gente e fui uma desilusão tão grande para ti? Não é maravilhoso, Jim, o quanto as pessoas podem significar umas para as outras? Fico tão contente por nos termos tido um ao outro durante a infância.” (p. 211)
Doces e ternas são as palavras de Willa Cather transpostas pelos seus personagens, numa contínua reflexão sobre a vida e as relações que travamos, seja de amizade ou de amor, ou até mesmo quando ambos se confundem dando a ideia de amor ideal.
“Minha Ántonia” é um romance marcante e é tido como a obra icónica de Willa Cather ainda que tenha sido com “One of Ours” (1922) a obra que lhe valeu o Prémio Pulitzer, em 1923.
Excerto:
a ouvi neste país.
— E conversavam sobre o quê? — indaguei.
— Oh, sei lá! Sobre música, sobre a floresta, e sobre Deus, e também sobre quando eram novos. — Virou-se subitamente para mim e olhou-me nos olhos. — Achas que o espírito do meu pai consegue regressar a esses lugares, Jimmy?"
Tive o bom senso de regressar ao meu eu e de ter descoberto o pequeno círculo que é a experiência de um homem. Para mim e para a Ántonia, aquela fora a estrada do Destino; conduzira-nos a esses pequenos incidentes do acaso que premeditam tudo o que alguma vez poderemos ser. Agora compreendia que a mesma estrada voltaria a juntar-nos. Não obstante o que perdêramos, ambos possuíamos o passado precioso e incomunicável!” (p. 242)

Texto da autoria de Jorge Navarro

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