“Pairava
na página diante de mim, qual fotografia, e por baixo lia-se a
melancólica frase: 'Optima dies... prima fugit' [Os melhores dias
são os primeiros a fugir]." (p. 179)
A
edição de “Minha Ántonia” da escritora estadunidense Willa
Cather (1873-1947) coincide precisamente com os cem anos em que a
mais emblemática das suas obras foi publicada, numa altura em que a
Relógio d’Água decidiu retomar a edição das suas obras,
primeiro com “O Meu Inimigo Mortal” após uma interrupção de
mais de uma década com a edição de “Uma Mulher Perdida”.
Lemos
as primeiras páginas desta obra e rapidamente damos conta que
mergulhamos no universo da grande literatura e do melhor que o século
XX produziu nesta matéria.
A
narrativa não nos dá conta com rigor do período em que decorre,
sendo que podemos concluir que abrangerá desde o final do século
XIX, coincidindo com a imigração em massa de europeus que procuram
a sua sorte no país da abundância e dos sonhos, até às vésperas
da 1ª Guerra Mundial, ainda que a narrativa, no final, se perceba
que passou dos anos 20. Não é que seja um dado importante, contudo,
permite-nos o enquadramento histórico até para compreender o
desenvolvimento socioeconómico da região onde se desenrola a maior
parte da narrativa, em especial, o estado do Nebrasca.
Curiosamente,
“Minha Ántonia”, no que concerne a aspectos de natureza
socioeconómica tem ecos de “Os Frutos da Terra” do norueguês
Knut Hamsun, publicado em 1917, valendo-lhe o Nobel de literatura
três anos mais tarde. A ideia de colonizar uma região vazia em que
os primeiros colonos se dedicam ao que a terra e os animais lhes dão
é o ponto em comum nestas duas obras.
A
narrativa inicia com a chegada de uma grande família oriunda da
Boémia, os Shimerda, que tentam a sua sorte junto da grande colónia
de norugueses já instalada na região, e também de suecos, embora
menos expressivo. Os primeiros capítulos dão-nos conta das
dificuldades e desafios que esta família de boémios tem na América.
São igualmente descritos a ligação da comunidade entre si e o seu
empenho no que concerne ao espírito de entreajuda a esta nova
família que vive miseravelmente, havendo, pois, o desejo, de que
todos possam beneficiar da terra dos sonhos para que todos possam ser
felizes.
É
curioso que neste romance de Willa Cather não podemos dizer que
existem os oponentes, aqueles personagens que dificultam a vida a
terceiros, é, pois, um romance que ao lermos os primeiros capítulos
nos questionamos qual é o sentido, ou simplesmente que caminho será
este. E a resposta é precisamente a vida, a vida que corre ao sabor
das estações do ano, as rotinas domésticas e o trabalho do campo,
mas também a ligação ou dependência à cidade.
Jim
Burden é o narrador deste fulguroso romance de Willa Cather e é o
próprio que nos dá conta de todas as alterações que têm lugar em
Black Hawk, no Nebrasca, o pequeno lugar onde decorre a narrativa.
Jim Burden é uma criança e vive com os avós na sequência de ter
perdido os pais.
Jim faz-nos o relato das
brincadeiras, das rotinas, das histórias desta nova família de
estrangeiros, e claro, de Ántonia, uma menina um pouco mais velha
que ele, mas que ambos passam a desenvolver uma enorme amizade que se
confunde com amor, prolongando-se pela vida fora.
É
através de Jim que percebemos que o pai de Ántonia é o elo de
ligação à terra natal através das histórias que conta e da
importância da música. A língua checa que nunca deixam de falar
entre si ligam-nos fervorosamente como se fosse o único ponto de
contacto com a distante Europa e os seus costumes.
A
trágica morte do sr. Shimerda aproxima ainda mais Jim e Ántonia e a
angústia face à perda referencial leva Ántonia a questionar se
alguma vez o espírito do pai alguma vez voltará a encontrar paz e
sentir-se feliz.
"-
Isto faz-me sentir saudades, Jimmy, esta flor, este cheiro — disse
ela calmamente. — Temos muitas flores destas na minha terra.
Cresciam imenso no nosso jardim e o meu papá tinha um banco e uma
mesa verdes por baixo das copas. No verão, quando estavam em flor,
costumava sentar-se com o amigo que tocava trombone. Quando era
pequena, ia até lá para os ouvir conversar; conversas bonitas, como
nunca ouvi neste país.
- E
conversavam sobre o quê? – indaguei.
- Ela
suspirou e abanou a cabeça.
- Oh,
sei lá! Sobre música, sobre a floresta, e sobre Deus, e também
sobre quando eram novos. – Virou-se subitamente para mim e olhou-me
nos olhos. – Achas que o espírito do meu pai consegue regressar a
esses lugares, Jimmy?” (p. 158)
Os anos
da adolescência vão passando e com ela surge o despertar para a
sexualidade e tudo o que é diferente face ao que é tido como comum
ou paradigma é bastante apelativo. Neste caso, os rapazes da aldeia
sentiam-se profundamente enfeitiçados com as raparigas estrangeiras
que exercitavam o corpo graças às tarefas domésticas, nos campos e
com os animais, em oposição às raparigas locais que não tinham de
trabalhar para ajudar as famílias.
Os
bailes na cidade começam a ser o ponto de encontro dos jovens das
imediações e Ántonia desperta paixões graças à sua rara beleza,
mas também pela sua personalidade forte, marcante.
Sempre
próximos e numa relação sempre imaculada, Jim Burden e Ántonia
Shimerda acabaram por nunca concretizar o afecto que nutriam um pelo
outro ainda que reconhecessem que tenham tido a melhor das infâncias
e a melhor das amizades ao sabor do vento como parte integrante da
natureza.
Anos
mais tarde, quando se reencontram, e cada um com uma vida diferente,
há um dos mais belos diálogos do romance, que denotam a ideia de
amor para sempre e que há pessoas que passaram pela nossa vida que
nos marcaram e marcarão até ao fim dos tempos. Aqui poderíamos
apelar à ideia de homem e mulher ideais, ou até mesmo de um
casamento perfeito e que o leitor vê-se a desejar a cada momento que
se concretize e depois a questionar por que razão não se concretiza
esta união. É como na vida. Acontece quando tem de acontecer e não
acontece porque também não sabemos explicar os mistérios
insondáveis da vida ou do destino. Talvez seja isso.
“-
Sabes, Ántonia, desde que me fui embora que penso mais em ti do que
em qualquer outra pessoa daqui. Tenho pena que não tenhas sido minha
namorada, ou esposa, ou mesmo mãe ou irmã; qualquer coisa que uma
mulher possa ser para um homem. A ideia de ti faz parte da minha
mente; influencias as minhas tendências e aversões, todos os meus
gostos, centenas de vezes sem que eu me aperceba disso. És realmente
uma parte de mim.
Ela
virou os seus olhos luminosos e crédulos na minha direção e estes
encheram-se lentamente de lágrimas.
- Como é
isso possível, quando conheces tanta gente e fui uma desilusão tão
grande para ti? Não é maravilhoso, Jim, o quanto as pessoas podem
significar umas para as outras? Fico tão contente por nos termos
tido um ao outro durante a infância.” (p. 211)
Doces e
ternas são as palavras de Willa Cather transpostas pelos seus
personagens, numa contínua reflexão sobre a vida e as relações
que travamos, seja de amizade ou de amor, ou até mesmo quando ambos
se confundem dando a ideia de amor ideal.
“Minha
Ántonia” é um romance marcante e é tido como a obra icónica de
Willa Cather ainda que tenha sido com “One of Ours” (1922) a obra
que lhe valeu o Prémio Pulitzer, em 1923.
Excerto:
“Tive
o bom senso de regressar ao meu eu e de ter descoberto o pequeno
círculo que é a experiência de um homem. Para mim e para a
Ántonia, aquela fora a estrada do Destino; conduzira-nos a esses
pequenos incidentes do acaso que premeditam tudo o que alguma vez
poderemos ser. Agora compreendia que a mesma estrada voltaria a
juntar-nos. Não obstante o que perdêramos, ambos possuíamos o
passado precioso e incomunicável!” (p. 242)
Texto da autoria de Jorge Navarro
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