Rumo
ao Farol, Virginia Woolf, 1927
É
um desafio escrever sobre a escrita de Virginia Woolf pela sua
característica surpreendente, desconcertante e fora de esquemas ou
ideias preconcebidas. Inovadora sem dúvida, a forma como escreve e
nos leva a seguir o seu fio de pensamento. O título “Rumo ao
Farol” e a perspectiva aberta logo nas primeiras linhas do romance
por Mrs. Ramsay de que, se o tempo estivesse bom, se concretizaria no
dia seguinte a viagem ao Farol tão ansiada por James, não passa
afinal de uma miragem. Mr. Ramsay logo levanta entraves e vaticina
que o tempo não o vai permitir!
O
romance dividido em três capítulos decorre na ilha de Skye, nas
Hébridas. A primeira parte intitulada “A Janela” decorre num
Setembro onde o casal Ramsay e os oito filhos – quatro rapazes e
quatro raparigas – passam férias, juntamente com diversos
convidados. São os convidados de Mrs. Ramsay, uma figura maternal,
protectora, sempre atenta e ocupada, senão com os filhos,
especialmente com James, o mais novo, com o marido, com os convidados
e com os mais frágeis a quem deseja que nada falte. Ela é quanto a
mim a personagem central do livro. Dela vamos seguindo os
pensamentos, o que pensa sobre os outros, como se questiona a si
própria por atitudes que toma e de cuja justeza tem dúvidas, a
forma de lidar com Mr. Ramsay, um eterno desmancha-prazeres,
egocêntrico, emocionalmente frágil, sempre desejoso de ser adulado
e elogiado pelos outros, receoso dos seus fracassos profissionais,
incapaz de olhar para os outros e para as coisas, ou olhando-os com
sobranceria como seres inferiores e com o pensamento sempre noutro
sítio. Sendo protectora e aparentemente votada aos outros, no
entanto, Mrs. Ramsay também ela gostava que a valorizassem e que
gostassem dela e se referissem a ela como alguém especial. Para
alguns, ela era considerada dominadora e autoritária, mas ela não
se importava que pensassem isso. Adorava os filhos e lamentava a
perspectiva de vê-los crescer e de eles deixarem de ser os seus
bebés – “Era mais feliz do que nunca quando trazia um bebé
nos braços”. Por outro lado, considerava que uma mulher
solteira perdia o melhor da vida e daí o seu pendor casamenteiro,
nomeadamente com Lily Briscoe, uma jovem pintora independente,
metódica e feliz com o seu estado de solteira!
Considero
muito interessantes algumas considerações sobre a condição
feminina e sobre as diferenças sociais que a autora reflecte ao
longo da obra:
“…
na esperança de assim deixar de ser a doméstica cuja caridade
era uma espécia de bónus para a sua indignação… e se
convertesse… numa investigadora que estudasse o problema social”
“Cobrava
ânimo. Insinuando também, como fazia, a grandeza do intelecto dos
homens, mesmo na decadência, a submissão das mulheres – não que
censurasse a rapariga, e o casamento fora bastante feliz, segundo
pensava – ao trabalho dos maridos.”
“O
quadro de Lily! Mrs. Ramsay sorria. Com os olhinhos chineses e o
rosto enrugado, jamais se casaria; não poderia levar-se muito a
sério a sua pintura; mas era uma criaturinha independente. Mrs.
Ramsay gostava dela por isso mesmo e, assim, lembrando-se da promessa
que fizera, inclinou a cabeça.”
À
medida que se vai avançando no livro, onde não há praticamente
diálogos nem uma história a decorrer, mas o fluxo dos pensamentos
das personagens, o ruído do mar, a baía, a luz do Farol distante,
os gestos e as atitudes das pessoas, percebe-se que é um livro sobre
as relações humanas, as suas ambiguidades, as suas complexidades,
as nuances que fazem delas uma teia que se vai construindo. Cada
um(a) na sua complexidade vive dentro da sua solidão e da sua
intimidade. Apenas nesta primeira parte há um momento de reunião de
todos – adultos e crianças – em volta de um jantar de carne
assada no tacho, preparado com todo o esmero por Mrs. Ramsay: o
famoso Boeuf en Daube.
“O
Tempo passa” é o título do segundo capítulo. É o tempo da
guerra. O tempo da destruição, do caos, em que as viagens se tornam
perigosas e deixam de se fazer e por isso, a casa de Verão na
Escócia deixa de ser utilizada pelos Ramsay. “ A casa tinha
caído no caos e na ruína. Apenas o facho do Farol por um momento
entrava nos quartos…” Só Mrs McNab lá entra para limpar o
pó da casa vazia, sem alma. Dos Ramsay apenas se sabe da morte
súbita de Mrs. Ramsay, do casamento e morte por parto de Prue, a
filha mais velha e de Andrew que morre numa explosão. O tempo passou
e a guerra trouxe consigo a morte, a destruição, o caos.
Dez
anos depois, James tem agora 16 anos e o pai Mr. Ramsay 71.
Contrariados, obrigados pelo pai, James e Cam vão finalmente ao
Farol. “O Farol” assim se chama o terceiro e último capítulo do
livro. Todo ele se passa entre o exterior da casa onde Lily Briscoe
vai terminar a tela que ficou por fazer e que ela irá compor a
partir das imagens de Mrs. Ramsay e James que lhe ficaram gravadas na
memória e o barco onde seguem Cam, James ao leme a manobrar as velas
e Mr. Ramsay que lê alheado de tudo. Mr. Carmichael, deitado sobre a
relva perto de Lily e Macalister e o filho no barco a caminho do
farol são as restantes personagens que aqui nos surgem.
O
tempo passou e a casa já não é a mesma, nem o Farol. Lily Briscoe,
agora com 44 anos, não consegue deixar de sentir um sentimento de
perda, de impotência. “Tudo estava seco; tudo murcho; tudo
gasto. Não deveriam tê-la convidado, não deveria ter vindo.”
Mesmo realizada e independente, não consegue fugir a um
sentimento em que a sua auto-estima é abalada: “Não sou uma
mulher mas uma solteirona, ressequida, segundo parece, de mau feitio
e de mau humor.” À medida que observa o barco que lentamente
se vai afastando na baía, a caminho do Farol, Lily vai fazendo o
caminho que a levará à composição do quadro que quer pintar,
recordando as pessoas, imaginando acerca delas e usando as cores que
melhor se coadunam com essa memória longínqua e desfocada. Afinal
ela provava o contrário do que Tansley uma vez lhe segredara ao
ouvido “as mulheres não sabem pintar, as mulheres não sabem
escrever.”
No
barco, o ambiente é tenso e o rancor na relação entre os filhos e
o pai é evidente. A viagem é demorada porque o vento não ajuda ao
avanço do barco, mas as referências às águas profundas, a
naufrágios e afogamentos ocorridos ali em tempos idos, trazem um tom
de tragédia que só termina quando James leva finalmente o barco a
bom porto e Mr. James, pela primeira vez na vida, elogia o filho por
isso.
Para
terminar, a sensação de que ficou muito por escrever nesta minha
apreciação. Muito mesmo. James, dez anos depois daquele Verão em
que desejara tanto ir ao Farol, olhando-o da janela, pensava:
“Era
isso então o Farol, era isso?
Não,
também o outro era o Farol. Porque nada era, simplesmente, uma coisa
só. Também o outro era o Farol. Às vezes, era difícil vê-lo
através da baía. Ao cair da noite, olhavam e viam aquele olho a
abrir e a fechar, e a luz parecia alcançá-los no jardim aéreo e
ensolarado onde estavam sentados.”
Julho
de 2018
Almerinda
Bento
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