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segunda-feira, 9 de julho de 2018

A Convidada Escolhe: "Rumo ao Farol"


Rumo ao Farol, Virginia Woolf, 1927
É um desafio escrever sobre a escrita de Virginia Woolf pela sua característica surpreendente, desconcertante e fora de esquemas ou ideias preconcebidas. Inovadora sem dúvida, a forma como escreve e nos leva a seguir o seu fio de pensamento. O título “Rumo ao Farol” e a perspectiva aberta logo nas primeiras linhas do romance por Mrs. Ramsay de que, se o tempo estivesse bom, se concretizaria no dia seguinte a viagem ao Farol tão ansiada por James, não passa afinal de uma miragem. Mr. Ramsay logo levanta entraves e vaticina que o tempo não o vai permitir!

O romance dividido em três capítulos decorre na ilha de Skye, nas Hébridas. A primeira parte intitulada “A Janela” decorre num Setembro onde o casal Ramsay e os oito filhos – quatro rapazes e quatro raparigas – passam férias, juntamente com diversos convidados. São os convidados de Mrs. Ramsay, uma figura maternal, protectora, sempre atenta e ocupada, senão com os filhos, especialmente com James, o mais novo, com o marido, com os convidados e com os mais frágeis a quem deseja que nada falte. Ela é quanto a mim a personagem central do livro. Dela vamos seguindo os pensamentos, o que pensa sobre os outros, como se questiona a si própria por atitudes que toma e de cuja justeza tem dúvidas, a forma de lidar com Mr. Ramsay, um eterno desmancha-prazeres, egocêntrico, emocionalmente frágil, sempre desejoso de ser adulado e elogiado pelos outros, receoso dos seus fracassos profissionais, incapaz de olhar para os outros e para as coisas, ou olhando-os com sobranceria como seres inferiores e com o pensamento sempre noutro sítio. Sendo protectora e aparentemente votada aos outros, no entanto, Mrs. Ramsay também ela gostava que a valorizassem e que gostassem dela e se referissem a ela como alguém especial. Para alguns, ela era considerada dominadora e autoritária, mas ela não se importava que pensassem isso. Adorava os filhos e lamentava a perspectiva de vê-los crescer e de eles deixarem de ser os seus bebés – “Era mais feliz do que nunca quando trazia um bebé nos braços”. Por outro lado, considerava que uma mulher solteira perdia o melhor da vida e daí o seu pendor casamenteiro, nomeadamente com Lily Briscoe, uma jovem pintora independente, metódica e feliz com o seu estado de solteira!
Considero muito interessantes algumas considerações sobre a condição feminina e sobre as diferenças sociais que a autora reflecte ao longo da obra:
“… na esperança de assim deixar de ser a doméstica cuja caridade era uma espécia de bónus para a sua indignação… e se convertesse… numa investigadora que estudasse o problema social”
Cobrava ânimo. Insinuando também, como fazia, a grandeza do intelecto dos homens, mesmo na decadência, a submissão das mulheres – não que censurasse a rapariga, e o casamento fora bastante feliz, segundo pensava – ao trabalho dos maridos.”
O quadro de Lily! Mrs. Ramsay sorria. Com os olhinhos chineses e o rosto enrugado, jamais se casaria; não poderia levar-se muito a sério a sua pintura; mas era uma criaturinha independente. Mrs. Ramsay gostava dela por isso mesmo e, assim, lembrando-se da promessa que fizera, inclinou a cabeça.”
À medida que se vai avançando no livro, onde não há praticamente diálogos nem uma história a decorrer, mas o fluxo dos pensamentos das personagens, o ruído do mar, a baía, a luz do Farol distante, os gestos e as atitudes das pessoas, percebe-se que é um livro sobre as relações humanas, as suas ambiguidades, as suas complexidades, as nuances que fazem delas uma teia que se vai construindo. Cada um(a) na sua complexidade vive dentro da sua solidão e da sua intimidade. Apenas nesta primeira parte há um momento de reunião de todos – adultos e crianças – em volta de um jantar de carne assada no tacho, preparado com todo o esmero por Mrs. Ramsay: o famoso Boeuf en Daube.
“O Tempo passa” é o título do segundo capítulo. É o tempo da guerra. O tempo da destruição, do caos, em que as viagens se tornam perigosas e deixam de se fazer e por isso, a casa de Verão na Escócia deixa de ser utilizada pelos Ramsay. “ A casa tinha caído no caos e na ruína. Apenas o facho do Farol por um momento entrava nos quartos…” Só Mrs McNab lá entra para limpar o pó da casa vazia, sem alma. Dos Ramsay apenas se sabe da morte súbita de Mrs. Ramsay, do casamento e morte por parto de Prue, a filha mais velha e de Andrew que morre numa explosão. O tempo passou e a guerra trouxe consigo a morte, a destruição, o caos.
Dez anos depois, James tem agora 16 anos e o pai Mr. Ramsay 71. Contrariados, obrigados pelo pai, James e Cam vão finalmente ao Farol. “O Farol” assim se chama o terceiro e último capítulo do livro. Todo ele se passa entre o exterior da casa onde Lily Briscoe vai terminar a tela que ficou por fazer e que ela irá compor a partir das imagens de Mrs. Ramsay e James que lhe ficaram gravadas na memória e o barco onde seguem Cam, James ao leme a manobrar as velas e Mr. Ramsay que lê alheado de tudo. Mr. Carmichael, deitado sobre a relva perto de Lily e Macalister e o filho no barco a caminho do farol são as restantes personagens que aqui nos surgem.
O tempo passou e a casa já não é a mesma, nem o Farol. Lily Briscoe, agora com 44 anos, não consegue deixar de sentir um sentimento de perda, de impotência. “Tudo estava seco; tudo murcho; tudo gasto. Não deveriam tê-la convidado, não deveria ter vindo.” Mesmo realizada e independente, não consegue fugir a um sentimento em que a sua auto-estima é abalada: “Não sou uma mulher mas uma solteirona, ressequida, segundo parece, de mau feitio e de mau humor.” À medida que observa o barco que lentamente se vai afastando na baía, a caminho do Farol, Lily vai fazendo o caminho que a levará à composição do quadro que quer pintar, recordando as pessoas, imaginando acerca delas e usando as cores que melhor se coadunam com essa memória longínqua e desfocada. Afinal ela provava o contrário do que Tansley uma vez lhe segredara ao ouvido “as mulheres não sabem pintar, as mulheres não sabem escrever.”
No barco, o ambiente é tenso e o rancor na relação entre os filhos e o pai é evidente. A viagem é demorada porque o vento não ajuda ao avanço do barco, mas as referências às águas profundas, a naufrágios e afogamentos ocorridos ali em tempos idos, trazem um tom de tragédia que só termina quando James leva finalmente o barco a bom porto e Mr. James, pela primeira vez na vida, elogia o filho por isso.
Para terminar, a sensação de que ficou muito por escrever nesta minha apreciação. Muito mesmo. James, dez anos depois daquele Verão em que desejara tanto ir ao Farol, olhando-o da janela, pensava:
Era isso então o Farol, era isso?
Não, também o outro era o Farol. Porque nada era, simplesmente, uma coisa só. Também o outro era o Farol. Às vezes, era difícil vê-lo através da baía. Ao cair da noite, olhavam e viam aquele olho a abrir e a fechar, e a luz parecia alcançá-los no jardim aéreo e ensolarado onde estavam sentados.”
Julho de 2018
Almerinda Bento

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