Depois de “Filhas sem Nome”, este é o segundo livro que leio da autoria de Xinran, uma escritora e jornalista chinesa. Também este tem como centro
as mulheres chinesas e a sua condição de desigualdade e profunda
discriminação em relação aos homens. Aqui ela trata do abandono,
rejeição e morte de muitas meninas chinesas, por serem raparigas, por
serem um segundo filho, ou por não serem o filho primogénito. E também
das que sobreviveram e tiveram a sorte de serem adoptadas.
Certamente o facto de ela própria ter sentido “falta de ter sido filha” e de quase no final do livro confessar a sua experiência pessoal de ter sido forçada a abdicar de uma menina que quis adoptar, por já ser mãe de um rapaz, foram razões suficientes para escrever este livro pungente de histórias dramáticas que teve a oportunidade de conhecer por via da sua profissão de repórter e locutora na rádio. Filha da Revolução Cultural, numa altura em que os laços de afecto não eram considerados importantes, em que o amor não era verbalizado ou demonstrado através de um gesto de carinho como um simples abraço, as histórias que ouviu de mulheres em aldeias remotas ou em grandes cidades da China, levaram Xinran a querer deixar esse testemunho para a actual geração de jovens chineses desconhecedores desse passado. Mas não só: uma mensagem para as mães chinesas desconhecidas que foram forçadas a abandonar as filhas e também para as filhas adoptadas que nunca conheceram as suas mães biológicas e que se perguntam “por que é que a minha mamã chinesa não me quis?”
Quando em 2004, já a viver no Reino Unido, fundou a “Mother’s Bridge of Love” (MBL) Xinran quis, com esta associação, ser um instrumento de ligação das meninas chinesas adoptadas no estrangeiro à cultura das suas mães biológicas, minimizando sentimentos de dúvida, incompreensão e tristeza das meninas por terem sido abandonadas.
O livro é pungente não só pela crueza de muitas das histórias reais, mas pela ambivalência da escritora na forma de passar aquele testemunho. Ao iniciar a escrita em 2008, teve dúvidas se o livro deveria ser romanceado ou factual. À medida que vai contando as dez histórias de mulheres, a autora contextualiza-as na sociedade chinesa e refere a tradição ancestral da valorização dos rapazes porque ajudam ao sustento e o desejo de que o primeiro filho do casal seja um varão para honrar a memória dos antepassados; ou a desvalorização das raparigas, a maldição que era ser mulher e mãe, ter uma filha era uma calamidade pois “não se conta como ser humano a não ser que se tenha um filho rapaz.”
Mas a China moderna e as grandes transformações ocorridas no passado século não melhoraram essa situação nem diminuíram a ausência de direitos das mulheres. As tradições e a cultura persistem mesmo com algumas mudanças legislativas. A Lei da População e do Planeamento Familiar que entrou em vigor em 2002 não deixa lugar a dúvidas. No seu artigo 18º lê-se: “O Estado mantém a sua política corrente para a reprodução, encorajando o casamento e a procriação tardios e defende um filho por casal. Caso estejam preenchidos os requisitos especificados pelas leis e pelos regulamentos, podem ser feitos planos para um segundo filho, caso seja solicitado. Serão formuladas medidas específicas a este respeito pelo Congresso Popular ou pelo seu comité permanente de uma província, região autónoma ou município sob alçada directa do Governo Central.”
Xinran aborda inúmeras questões como o mundo fechado e privado que é a vida do casal, o conceito inexistente de amor no casamento, uma sociedade em que as pessoas não são estimuladas nem sabem expressar sentimentos ou receiam ser castigadas por os expressarem, em que chorar é apontado como sinal de fraqueza e depois os suicídios como quinta causa de morte na China, sendo o número de mulheres superior ao dos homens. Num relatório das Nações Unidas de 2002, a China encabeçava a lista de suicídios de mulheres, sobretudo jovens e com especial incidência entre as mulheres camponesas. Por que será?
Enquanto viveu na China fazendo rádio e reportagens até 1997 percebeu que enquanto jornalista podia ter um papel decisivo ao testemunhar situações e histórias de vida no sentido de despertar consciências e chegar ao coração de pessoas desesperadas e sozinhas. Enquanto fundadora de uma associação - a MBL - podia apoiar as meninas chinesas adoptadas em todo o mundo, fazendo uma ponte de amor entre as meninas e as suas mães biológicas que um dia tiveram que renunciar ao seu amor. Enquanto escritora continua por todo o mundo a dar testemunho do que se passa no seu país natal e nos faz chegar bem fundo à alma e aos sentimentos de pessoas anónimas, desconhecidas, longínquas, mas tão próximas, porque humanas.
Nas suas viagens, entre os objectos que leva, há um seixo e uma folha que sempre a acompanham. Estão associadas a duas histórias de vida: a de uma mãe a quem raptaram a filha e que acredita que um dia a irá reaver e de uma filha raptada que anseia um dia reencontrar a mãe biológica. Esses objectos que um dia lhe foram oferecidos simbolizam o sonho de um reencontro improvável, mas sempre perseguido.
Este livro é também uma reflexão sobre os julgamentos morais instantâneos de casos que surgem na comunicação social de mulheres que abandonam os filhos. Melhor seria que se fizessem perguntas, antes de se julgar. Serão mesmo mulheres sem coração?
Maio 2017
Almerinda Bento
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