"Levamos
dentro de nós a direcção do nosso caminho, e dentro de nós
brilham as eternas estrelas do nosso destino." (p. 220)
Singular,
electrizante, nocturno, e intimista, quatro adjectivos que
caracterizam “Viajante à Luz da Lua” do húngaro Antal Szerb
(1901-1945). O livro que constitui uma das referências da literatura
húngara contemporânea foi recentemente publicado pela editora
Guerra & Paz, permitindo, desta forma, aos leitores portugueses o
contacto com um autor que se percebe ser grande por todos os
elementos que integra neste romance sublime e magistral.
Fazendo
uma breve pesquisa sobre a vida de Antal Szerb, rapidamente
percebemos que muitos aspectos se reflectem em “Viajante à Luz da
Lua”. Considerado uma referência no meio académico do seu país,
Antal Szerb foi eleito Presidente da Academia Literária Húngara, em
1933, e tornou-se professor de Literatura da Universidade de Szegad,
em 1937. Falava fluentemente várias línguas e viveu durante alguns
anos em países como a França, Inglaterra e Itália. Foi galardoado
em 1935 e 1937 com o Prémio Baumgarten, além de ter traduzido obras
a partir do francês, inglês e italiano. Herdeiro de toda uma
tradição cultural judaica pela via seus pais, Antal Szerb foi,
contudo, baptizado católico, ainda que durante o regime nazi, tenha
sido perseguido devido à sua ascendência, as suas obras foram
proibidas, acabando por ser enviado para o campo de concentração de
Balf, na Hungria, onde viria a morrer, em 1945.
Em
relação à obra “Viajante à Luz da Lua”, Antal Szerb constrói
uma narrativa em torno de Mihály, um adolescente burguês de
Budapeste, assente na nostalgia permanente que remonta a uma
juventude feliz face a um período da vida em que sentiu o amor de
uma forma idílica, pura, na relação com alguns amigos próximos em
que confundia a fronteira entre a amizade e o amor e onde o teatro
desempenhava uma componente determinante, de sublimação. A obsessão
pela morte tornou-se uma constante na representação de sucessivos
papéis ao ponto de Mihály apostar ao máximo na representação de
obras de referência da literatura ou mesmo de acontecimentos
históricos em que a morte estivesse presente. A necessidade de
representar a morte constituía um misto de fascínio pela
necessidade em que a imaginação é estimulada face ao desejo de
representar a melhor das mortes, mas também de perceber que a vida
continua para lá do teatro através das suas múltiplas
“ressurreições” ou “ressurgimentos” como se a vida e a
morte não passassem de um mero jogo.
“O
mais difícil era ter de participar nos seus jogos. Não tenho
nenhuma inclinação para o teatro nem para a interpretação, sou
irremediavelmente tímido e, ao princípio, quase sempre senti que
iria morrer, quando me vestiam o colete roxo do avô para desempenhar
o papel do Papa Alexandre VI, numa peça sobre os Bórgia. Mais
tarde, habituei-me a isso, mas não era capaz de improvisar aquelas
frases barrocas que eles conseguiam. Em contrapartida, era uma
excelente vítima. Era o melhor para ser envenenado ou frito em óleo
a ferver. Algumas vezes tive de representar a multidão, vítima da
crueldade de Ivan, o Terrível, e agonizar e morrer vinte e cinco
vezes seguidas, e sempre de uma maneira diferente. As minhas técnicas
de agonia tinham muito sucesso.
Também
tenho de te contar outra coisa, apesar de me custar um pouco, mesmo
depois de ter bebido tanto vinho, mas a minha mulher deve saber isto:
gostava muito de ser vítima. Logo de manhã, já pensava nisso e
esperava pelo momento durante o dia todo, sim…
-
Porque gostavas tanto de ser vítima? – perguntou Erzsi.
-
Hum… por razões eróticas, se é que me faço entender… Com o
passar do tempo, era eu que inventava as histórias em que podia
desempenhar o papel de vítima.” (pp. 37-38)
O
palco de representação destes sucessivos papéis era a casa de
Tamás e Éva, irmãos pobres, sem mãe e com um pai alcoólico,
ambiente que exercia fascínio sobre Mihály e outros amigos
burgueses na medida em que aquele convívio colidia com as regras e
valores em que a burguesia se movia. O contraste dos ambientes,
aquela pobreza desmesurada e a ausência de consciência da realidade
por parte dos irmãos Tamás e Éva funcionavam como que um desejo de
revolta face a uma ordem estabelecida, mas prestes a ruir com a 1ª
Guerra Mundial.
Esta
amizade acaba por se confundir com amor na medida em que os rapazes
deste grupo se sentiam apaixonados por Éva que por sua vez mantinha
uma relação deveras íntima com o seu irmão Tamás. A amizade e o
convívio com estes irmãos marcou para sempre a vida dos demais
rapazes, nomeadamente Mihály que para sempre nutriu um amor
obsessivo por Éva, mas também por Tamás que acabou por ter uma
morte trágica, sendo que, a partir daí ainda se consolidou mais a
ideia de perseguir a morte, de a desejar, como que havendo um
erotismo ao concretizá-la, para amar, para compreender e para depois
ressurgir novamente algures numa outra esfera.
Neste
grupo de amigos há um indivíduo com um percurso peculiar. Trata-se
de Ervin que, em certa medida, tem tantos traços em comum com o
próprio Antal Szerb, sobretudo no que concerne ao aspecto da
religião. Ervin era judeu, mas converteu-se num católico fervoroso.
Enquanto que para os demais amigos, o catolicismo constituía uma
espécie de adaptação, para Ervin era a forma de demonstrar a
rebeldia. Ervin tornou-se tão rigoroso consigo próprio face ao
fascínio que sentia pela “severidade intransigente dos dogmas e
das ordens morais” do catolicismo que “vigiava com uma pistola a
salvação da sua alma.” (p. 43)
A
nostalgia, o desejo de morrer, a obsessão por Éva que nunca terá
ido além da forma de amor idílico ou platónico, não consumado
acompanharão Mihály durante vários anos ao ponto de em plena
lua-de-mel, com a sua esposa Erzsi, em Itália, se sente perturbado
na sequência de um inusitado encontro com um dos amigos da
adolescência. Os fantasmas regressam em cadeia à mente de Mihály
ao ponto de interrogar tudo à sua volta, o sentido da vida,
balançando entre o dever e o desejo abandonar o barco, seguindo a
sua vida, descobrindo-se a si próprio.
E
é isso que acontece… Mihály perde o comboio para Roma onde está
Erzsi, trilhando cada um o seu caminho. Mihály jamais esquecerá a
sua viagem a Itália, que sempre adiou, por considerar um país
intenso, rico em História, em emoções e sensações, paisagens
únicas que mexem com o seu intelecto e espírito.
Será
esta sensação de “liberdade destruidora” (p. 187) que moverá
Mihály. A planeada lua-de-mel de Mihály é substituída por uma
longa viagem pela Itália, uma viagem de auto-reconhecimento, de
descoberta, de morte e de ressurgimento, de perdão, mas também de
amor. É à noite, nas inúmeras vielas e becos de algumas cidades
que Mihály compreende a essência do ser humano, de si próprio. As
sombras que contrastam com a luz, a escuridão, tantas vezes
associados a estado de alma, de espírito, como se tratasse de uma
luta titânica entre o desejo e o dever, o amor e o ódio, a paz e a
guerra, a vida e a morte.
Inúmeras
são as alusões a outras obras de referência no âmbito da
literatura, mas também da História e da Filosofia, colocando Antal
Szerb como um escritor completo fazendo a ponte entre a escrita e o
conhecimento científico. “Viajante à Luz da Lua” para além do
seu carácter intimista em que o leitor embarca, faz também a fusão
entre a história das religiões e a ideia e sentido de história e
de civilização apresentado por Oswald Spengler (1880-1936). Segundo
o historiador e filósofo alemão, cada civilização tem o seu ciclo
de vida semelhante ao do ser humano em termos biológicos – nasce,
cresce, amadurece, entra em declínio e morre. Assim, cada cultura ou
civilização poderá fundir-se numa outra cultura ou civilização
que se lhe sobreponha, “engolindo-a”, mas mantendo alguns dos
princípios ou valores que passam a ser adaptados a uma nova
realidade emergente, actual. Independentemente desta sobreposição e
fusão civilizacional, há uma ideia de civilização que subjaz a
todas as civilizações que tem que ver com o filtro que que vai
fazendo no decorrer dos séculos, pura depuração temporal, fruto
das vivências face às novas necessidades que se impõem ao homem
enquanto ser biológico e cultural, não esquecendo todas as
conquistas alcançadas no domínio da ciência e da técnica que
caracterizam um dado período e que é transmitido à geração
seguinte.
Há
uma passagem determinante que reflecte as ideias acima referidas
quase como se tratasse de um ensaio ou de uma aula de Teoria da
História e do conhecimento histórico que Antal Szerb, de forma
exímia, transpõe neste romance. “No início da época romana, o
cristianismo estava constantemente ameaçado de se converter na mais
pura religião de morte, parecida com a dos índios do México. Mas
depois, veio ao de cima o seu carácter mediterrânico e humano. O
que se tinha passado? Os povos do Mediterrâneo conseguiram sublimar
e racionalizar o desejo da morte, quero dizer que conseguiram atenuar
o desejo da morte num desejo de além, transformaram o terrível
‘sex-appeal’ das sereias da morte numa coisa chamada coros e
ordens celestes. Desde então, os crentes puderam aspirar a uma morte
bonita, não desejavam os prazeres pagãos do acto de morrer, mas os
prazeres civilizados e convenientes do paraíso. O desejo primitivo,
ancestral e pagão da morte foi relegado para as camadas inferiores
da religião, as superstições, os feitiços e o satanismo. Quanto
mais forte é uma civilização, mais inconsciente se torna o amor
pela morte.” (p. 186)
“Viajante
à Luz da Lua” apresenta-se como uma obra magistral, completa,
complexa, intimista, além de constituir em si mesma uma lufada de ar
fresco no presente contexto editorial, apresentando o escritor Antal
Szerb como um dos vultos incontornáveis da literatura contemporânea
húngara, sendo marcadamente um herdeiro de toda uma tradição
judeo-cristã naquilo que alude à herança cultural de toda uma
grande família europeia, não esquecendo a ideia de destino, de
sofrimento e também de renovação presentes no Judaísmo e que
foram sublimados pelo Cristianismo.
Texto da autoria de Jorge Navarro
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