Passado entre o Ohio e a Virgínia entre finais da 2ª Guerra Mundial e os anos 60, “Sempre o Diabo” apresenta-se como um misto de William Faulkner, Flannery O’Connor e Shirley Jackson (entre outros) no tocante à descrição do ambiente rural, rude, opressivo e até inóspito nalgumas situações e que serve de palco à disseminação de inúmeros cultos religiosos cristãos de tendência protestante capaz de gerar fanatismos.
Se por um lado, o ambiente acima descrito gera uma crença inigualável numa parte significativa da população, encarando Jesus como uma referência nas suas vidas ao ponto de o mais pálido desvio das normas de conduta conduzam o crente ao Inferno eminente, por outro lado, esta mesma crença exacerbada é capaz de conduzir muitas pessoas à loucura ao ponto de cometerem os crimes mais ignominiosos em nome de Deus sem que para isso tenham consciência, pelo menos nalguns casos.
Para além destas situações, há ainda aqueles que tomando partido do ambiente tendencialmente religioso que aqueles estados propiciam, tentam através da palavra disseminar o medo perante Deus devido ao facto de serem pecadores, aproveitando-se, desse modo, das pequenas comunidades com uma baixa instrução com vista a imporem a sua vontade ganhando dividendos à conta de uma falsa pregação.
Em “Sempre o Diabo” sobram dedos de uma mão ao contarmos os personagens que podemos dizer que são pessoas boas e honestas e que levam afinal de contas uma vida cristã na verdadeira aceção da palavra atendendo ao facto de praticamente não haver ninguém em quem se possa depositar confiança. Na verdade, não há praticamente ninguém neste livro que se aproveite utilizando a linguagem corrente! Os personagens são pérfidos, cruéis e vingativos expelindo ódio em praticamente todos os seus atos. O ambiente de alguma forma cruel em que os personagens deambulam promove, em certo sentido, a ausência de objetivos na vida, provocando numas situações a degradação e miséria das suas vidas conduzindo-os à prática de atos que põem em perigo a sua própria integridade física capaz de levar à destruição da sua vida como da dos outros.
Em “Sempre o Diabo” não há espaço para moralismos! Apesar de toda a realidade estar montada para que se viva em conformidade com as leis de Deus, o certo é que os muitos episódios terríveis que acontecem ao longo da narrativa afastam-se efetivamente desse caminho ao ponto de um dospersonagens afirmar, a dada altura, perante a sua perplexidade face a determinados acontecimentos “É difícil levar uma vida a fazer o bem (…). Parece que o Diabo nunca desiste” (p. 276) ou “Acho que Deus não tem nada a ver com isto.” (p. 300)
Por outro lado, temos também alguns personagens que não lidam bem com a injustiça perante os homens ou a vida em geral e, nesse sentido, perante a sua crença em Deus, o leitor entra numa linha de loucuras cometidas na tentativa de Deus possa ouvir as preces e perceber a fé dos homens quando afinal são cometidos atos inumanos na tentativa da eminente redenção. Exemplo disso é o caso de Willard Russell que perante o cancro terminal da sua esposa Charlotte decide criar na floresta, próxima de casa, um altar de orações onde sacrifica animais vertendo o seu sangue, sacrificando-se também perante o desespero que sente face à perda inevitável.
Arvin, seu filho, perde ambos os pais com uma diferença de um dia acabando por ir viver com a avó e um tio que lhe tentam incutir os preceitos cristãos da bondade e da justiça, valores com que tenta pautar a sua vida e a daqueles que o rodeiam, embora nem sempre consiga sentir-se em consciência consigo próprio se não fizer escorrer sangue em nome dessa mesma justiça divina ou chamemos-lhe simplesmente universal.
Entre falsos pregadores criminosos, xerifes corruptos, casais com taras sexuais fora do comum, todos
têm lábia e todos matam ao ponto de o Diabo andar sempre por perto a fazer das suas. Até quem vive
com firmes convicções, mais tarde ou mais cedo acaba por colocar tudo em causa comoEmma, a avó de Arvin.
Donald Ray Pollock arrasta por completo o leitor para um degredo através de um enredo complexo, mas bem montado em que a maldade é transversal a todo o livro ao ponto de doer a alma a dada altura. A crueldade que se confunde com a loucura atinge índices que dificilmente encontramos na literatura nos dias de hoje ao ponto de todos os personagens do livro serem verdadeiras “almas perdidas” (p. 256), no entanto, não conseguimos deixar de o ler sem, contudo, deixarmos de sentir (alguma) compaixão por alguns personagens, nomeadamente Arvin, o personagem principal que tenta somente redimir-se perante Deus tentando ser bom e justo.
“Sempre o Diabo” é definitivamente um dos grandes livros de literatura publicados este ano relativamente ao qual não ficaremos indiferentes.
Excertos:
"Só quando não tinha as veias cheias de uísque é que Willard não ia de manhã e à noite à clareira para falar com Deus. Arvin não sabia o que era pior, se a bebida, se as rezas. Até onde a sua memória conseguia recuar, tinha a sensação que o pai andara sempre a lutar como Diabo." (p. 9)
“O jovem pregador começou a andar para cima e para baixo pela nave da igreja a perguntar em voz alta às pessoas:
- Qual é a coisa que mais temem? – Agitava os braços e descrevia os tormentos do Inferno – a imundície, o horror e o desespero – e a eternidade que se estendia para sempre perante cada um dos presentes. – Se a coisa que mais temem são as ratazanas, Satanás há de arranjar maneira de vos rodear delas. Irmãos e irmãs, elas hão de roer-vos a cara, sem que vocês possam levantar um dedo que seja contra elas, e será assim para sempre.Um milhão de anos na eternidade não se compara nem com uma tarde aqui em Coal Creek. Nem temem imaginar. Não há ninguém com uma cabeça capaz de conceber tamanho sofrimento. Lembram-se daquela família deMillersburg que no ano passado foi assassinada quando estava a dormir? A família a quem aquele louco arrancou os olhos? Imaginem que durante um bilião de anos – é um milhão de milhões, meus caros, estive a ver – são torturados assim, mas sem nunca morrerem. Que ficam para todo o sempre a arrancar-vos os olhos da cabeça
com uma faca velha. Só espero que aqueles pobres estivessem de bem com o Senhor quando aquele louco lhes entrou pela janela. A verdade, irmãos e irmãs, é que nem conseguimos imaginar as maneiras que o Diabo tem de nos torturar, porque nunca houve nenhum homem tão mau, nem sequer esse tal Hitler, ao ponto de fazer o mesmo que Satanás fará aos pecadores no dia do Juízo Final.” (p. 36)
“Já havia dormido com algumas prostitutas – aquela zona estava cheia delas – mas tinha vinte e poucos anos quando a mãe tivera o AVC que a deixara paralisada e praticamente sem falar. Nessa altura, não tinham aparecido amigos nenhuns a bater à porta, e Carl fora obrigado a tratar dela. Nos primeiros meses, tinha pensado pôr-lhe uma almofada sobre a cara contorcida e libertá-los a ambos mas, pensando bem, era a mãe dele. Em vez disso, resolvera então registar a longa decadência do seu corpo enrugado em fotografias, uma de quinze em quinze dias durante os treze anos que se seguiram. Por fim, ela habituou-se. Até que, uma manhã, foidar com ela morta. Sentou-se à beira da cama e tentou comer os ovos mexidos que tinha feito para o pequeno-almoço dela, mas não conseguiu. Passados três dias, foi ele a atirar a primeira pazada de terra para cima do caixão dela.” (p. 116)
Texto da autoria de Jorge Navarro
O livro que, até agora, mais gostei de ler em 2015. Excelente.
ResponderEliminarEste ainda não li, Seve. Mas ainda bem que comentaste porque assim vou procurá-lo! O Jorge, o autor do artigo gostou muito, como se vê pelas suas palavras...
Eliminar