“Maneiras de voltar para casa” é o primeiro livro do chileno Alejandro Zambra (n. 1975) a ser publicado em Portugal sob a chancela da Divina Comédia Editores.
Partindo de um episódio em que o personagem principal com seis ou sete anos se perde dos seus pais, mas que ainda assustado consegue regressar a casa antes destes pelo que lhe dizem “Agora sabemos que não tornarás a perder-te” (p. 16) é o mote de “Maneiras de
voltar para casa” que, mais tarde, como adulto e escritor, procura na literatura uma forma de terapia, quase psicanálise, na tentativa de compreender e saldar as dívidas com o passado, ligando-o às pontas soltas do presente. “Escrever faz-te bem (…) As palavras protegem-te. Procuras frases, procuras palavras, e isso é superbom (…).” (p. 63)
Este é um tema recorrente na literatura sul-americana na sequência das ditaduras militares que estiveram vigentes naqueles países durante várias décadas sendo que no caso específico do Chile, a ditadura militar instaurada por Augusto Pinochet com o golpe de estado em 1973 tendo permanecido no poder até 1990, é o pano de fundo deste livro que contribui de algum modo para a compreensão da História contemporânea daquele país.
O personagem principal enquanto criança não tem ainda maturidade para compreender o impacto da ditadura nas vidas dos seus familiares e amigos na medida em que os dias na vida de uma criança são sempre compridos com as brincadeiras que a ocupam e despreocupa de quaisquer situações mais complexas. Nem mesmo quando é abordado por Cláudia, uma adolescente, que lhe solicita à laia de brincadeira para vigiar um determinado vizinho de nome Raul sem nunca compreender (nem querer) as razões de tal pedido. “Raul era na «vila», no bairro, o único que vivia sozinho. A mim custava-me a entender que alguém vivesse sozinho. Pensava que estar só era uma espécie de castigo ou de doença. (…) Dizia-se no bairro que Raul era democrata-cristão, e isso parecia-me interessante. É difícil explicar agora porque é que então um rapaz de nove anos podia achar interessante que alguém fosse democrata-cristão. Talvez julgasse que havia alguma relação entre o facto de ser democrata-cristão e a situação triste de viver sozinho.” (p. 19)
A ideia de mistério associada a vigiar alguém exerce um fascínio tal nesta criança sem que se aperceba de que possa estar a ser alvo de mais um dos esquemas subversivos que surgem no contexto da ditadura vigente no seu país.
Entretanto a criança cresce e torna-se adulto, sai de casa e articula os estudos universitários com vários trabalhos que lhe permitem a independência face aos pais. Tudo isto acontece no meio de muitos livros que com tempo desencadeiam no personagem principal o desejo de escrever acabando mesmo por se tornar escritor. “E quando acabei a universidade continuei a trabalhar em coisas variadas, porque estudei Literatura, que é o que estudam as pessoas que acabam a trabalhar em várias coisas.” (p. 83)
É precisamente neste ponto que este novo escritor passa a encarar a literatura e o próprio ato de escrita como uma forma de terapia e redenção com o passado tentando fazer as pontes necessárias com vista à compreensão não só da história recente do seu país, mas também compreender o papel que pessoas como ele próprio, os seus e tantos outros anónimos tiveram no período da ditadura e que papel têm atualmente após a implantação da democracia. “E por fim vem a frase temida e esperada, o limite que não posso, que não vou tolerar: Pinochet foi um ditador e tudo isso, matou algumas pessoas, mas ao menos naquele tempo havia ordem.” (p. 128)
Deste modo a reflexão exercida pelo personagem principal através das entranhas e meandros esconsos do passado levantam inúmeras questões ao nível da identidade de si mesmo e do seu país. “A escola mudou muito quando voltou a democracia. Eu acabava então de fazer treze anos e começava tardiamente a conhecer os meus companheiros: filhos de pessoas assassinadas, torturadas e desaparecidas. E também filhos de homicidas. Rapazes ricos, pobres, bons, maus. Ricos bons, ricos maus, pobres bons, pobres maus. É absurdo pôr as coisas assim, mas lembro-me de ter pensado, sem orgulho e sem autocompaixão, que eu não era rico nem pobre, que não era bom nem mau. Mas era difícil ser isso: nem bom nem mau. Achava que no fundo isso era ser mau.” (p. 67)
Numa escrita escorreita e muito atual, Alejandro Zambra embarca numa viagem dolorosa apanhando o leitor num dos portos da consciência levando-os aos tombos numa viagem que também poderá ser a sua (e nalguns aspetos até a do seu país, eventualmente), além de que funciona também como um thriller ao ponto de o leitor só se sentir satisfeito quando termina a leitura. Na verdade, o leitor embarca nesta leitura de tal forma que quando dá por isso está a chegar ao fim da viagem.
“Já vivi as emoções, todas as emoções. Quero uma vida tranquila, simples. Uma vida com passeios pelo parque. (…) Mas não é bom enganarmo-nos a nós mesmos.” (p. 138)
Texto da autoria de Jorge Navarro
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