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domingo, 23 de fevereiro de 2014

Ao Domingo com... Alice Brito

Do processo produtivo
Sete horas. Toca a levantar. Só a perspectiva do cheiro manso do café, a refastelar-se em tudo quanto é sítio, me dá alguma ligeireza. 

Quase meio litro depois, estou atarraxada à mesa da sala. 
Vivo numa casa grande. Tenho um espaço meu num quarto que só de vez em quando é preenchido. Uma mesa de trabalho, com estantes ao lado, sente-se um bocado abandonada à espera de uma ocupação. Mas é na sala que me sinto bem. Mais propriamente na mesa da sala. Ali, um computador ganha raízes. De vez em quando é temporariamente transplantado para o tal quarto, quando o terreno da mesa reclama a sua vocação de superfície de pratos, copos e talheres para receber amigos.
Sete e meia e começa a dança. Uma dança desconhecida. Nunca se sabe muito bem o que dali vem. 
Pode ser um artigo para um jornal on-line, sobre qualquer desmando ou mando, ou ordem ou desordem; pode ser mais uma página de um projecto de livro; pode ser um mail para um amigo ou amiga. O que é preciso é que o teclado funcione, abra a goela, sussurre palavras doces ou grite imprecações. Às vezes diz inconveniências. É preciso estar sempre de olho no bicho.
Comecei a escrever muito tarde. Acho que me faltou sempre a coragem de me enfrentar com a escrita. 
Mesmo assim, de vez em quando, ia compondo pequenos textos, uma ou outra frase avulsa na contracapa de um livro, numa agenda, ou num papel logo feito em bola devidamente amachucada. 
Depois, decidi andar sempre com um caderninho. Ia apontando coisas. 
Nunca percebi muito bem como nasceu esta maluquice de escrever um romance.
Tudo começou quando me ofereceram um computador. Toda a gente já tinha a máquina e eu olhava para aquilo e sentia-me completamente banida daquele território proscrito. Depois, dedilhei palavras e afinal os muros não eram muito altos.
Se olhar para trás, encontro-me muitas vezes a escrever a eito, sem norte, deixa ver o que dá.

“ As mulheres da Fonte Nova” começaram pelo meio, quase fim. Comecei a escrever sobre dois amantes que depois de uma zanga se reencontraram. Tive de averiguar quem eram, de
onde tinham vindo, perceber-lhes o carácter, entender-lhes o passado. Questionei-me sobre o que faziam ali aquele homem e aquela mulher, que se encontram acidentalmente numa drogaria da avenida cinco de Outubro, da cidade em que nasci. Acidentalmente, uma ova! Fizeram-se encontrados, os safados.
 Quando escrevi sobre Setúbal, o Afonso tinha acabado de publicar a “História e cronologia de Setúbal”. Havia ali uma cidade que eu não conhecia, apesar de sempre ter vivido nela. Ou seja, a cidade que eu sempre tinha sentido, explicava-se finalmente.
Como se a gente observasse alguém, lhe descortinasse as manhas e os tiques, mas soubesse apenas vagamente o porquê daquela acrimónia, do eterno ressentimento setubalense, da acidez que a lindíssima cidade do sado ostenta quando se confessa.
Pressentia-lhe e testemunhara a miséria dos dias maus. Sabia do seu passado lutador. Mas desconhecia até que ponto a conflitualidade entre a cidade e poder, os poderes, se tinha feito sentir. 
Só se deve escrever sobre o que se conhece. Tinha finalmente sido apresentada à cidade completa. Dantes, faltava-me conhecer toda a genealogia de combates que esta minha parentela setubalense tinha travado de peito aberto contra a autoridade, mais propriamente, contra a pata implacável da autoridade.
O que tentei fazer naquele romance foi colocar pessoas naquele específico cenário: a Setúbal dos anos trinta a sessenta.
Gente que pensava, agia, sofria, mastigava os dias, conforme aquele tempo que então marcava passo, ia permitindo.
Um exercício tão intenso, que às vezes descambava no insulto. No insulto pesado. Há uma personagem, que é uma chata, que ao longo de todo o escrito me chama a atenção para o excesso ideológico e vocabular. As palavras existem para ser utilizadas. Os palavrões que surgem no texto são o registo ofensivo da sua autora contra quem nos lixou os dias. Pena que ainda ande por aí, quem os dias nos escangalhou. Pena, mesmo, porque a empresa do espatifanço da nossa vida continua de vento em popa.   

Quando acabei aquele escrito, fiquei feita barata tonta sem saber o que fazer. Como se estivesse de ressaca depois de uma grande tosga.
Lentamente, a pouco e pouco, as manhãs no meu cantinho da mesa foram ganhando feitio. Houve criaturas que se impuseram, que se mostraram no ecrã fazendo grandes acenos, muito assertivas, a quererem ter visibilidade, metendo-se como piolho por costura em tudo o que era linha. Foi preciso impor-lhes alguma compostura, até porque os terríveis transes por que passavam requeriam alguma disciplina.
Agora estão mais calmas. Aguardam.
Vamos ver o que sai dali.

Alice Brito

3 comentários:

  1. O resultado foi muito bom. Parabéns, Alice.

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  2. Este livro é fantástico! Escrevi sobre ele, na altura em que saiu, no JL.
    Um romance excepcional.

    Cristina Carvalho

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