A história tem como cenário a Islândia no século XIX tendo como ponto de partida uma pequena embarcação de pescadores que é apanhada de surpresa por um violento temporal que vitimou Bárður, um dos tripulantes que por descuido se esqueceu do impermeável apropriado para realizar a viagem em alto mar e com temperaturas muito baixas. Após o regresso a terra, o rapaz (de quem nunca sabemos o nome), um dos tripulantes da embarcação inicia uma longa viagem ao longo da ilha no intuito de devolver o livro Paraíso Perdido de Milton a Kolbeinn, um capitão cego, que o tinha emprestado ao seu amigo Bárður.
É ao longo desta viagem do rapaz pela Islândia que somos confrontados com os conceitos de vida e de morte e quão ténue é a margem que divide estas duas dimensões. A certeza que temos perante aquilo que conhecemos da vida é sempre preferível à incerteza da morte sendo a esperança que nos faz mover e ir mais além na concretização do destino de cada um. “A vida humana é uma corrida constante contra a escuridão do mundo, a traição, a crueldade, a cobardia, uma corrida que tantas vezes parece desesperada, mas ainda assim, corremos e, ao fazê-lo, a esperança sobrevive.” (p. 13)
A viagem do rapaz pelo país-ilha é assim semelhante à vida que cada um leva tornando-a no Paraíso ou no Inferno consoante a atitude quedemonstra em articulação com o meio que o rodeia, assim como com a importância que as pessoas têm à sua volta.
É nesta ideia da relação com os outros que Jón Kalyan Stefánsson emParaíso e Inferno nos apresenta a ideia de que cada pessoa é importante na sociedade à qual pertence. Todos os habitantes da ilha são poucos face à imensidão agreste e impacto que a natureza exerce sobre os homens ao ponto de que cada ser humano ser apresentado como parte integrante de um pequeno cosmos social em que cada um exerce uma função e importância para os demais. São poucos os habitantes, daí a responsabilidade social de velar pelo bem-estar de todos e quando assim acontece também a sociedade se torna mais humana e consequentemente mais justa. “(…) Deveríamos cuidar daqueles que são para nós importantes e que têm em si bondade, e de preferência nunca os abandonar, a vida é demasiado curta para isso e, por vezes, termina de modo súbito, como descobriste desnecessariamente.” (p. 164)
Em Paraíso e Inferno, os livros assumem um papel extremamente importante na formação de cada um, assim como em cada núcleo familiar.“(…) O tempo livre era passado a ler. «Não tínhamos remédio. Pensávamos continuadamente em livros, em sermos educados, ficávamos fervorosos, frenéticos, se ouvíamos falar de algum livro novo e interessante, imaginávamos como poderia ser, falávamos sobre o seu eventual conteúdo à noite, depois de vocês terem ido para a cama. E depois líamo-lo à vez, ou juntos, quando e se conseguíamos deitar-lhe a mão ou a uma cópia do mesmo feita à mão.»” (p. 34)
Assim como os livros eram considerados um bem raro e de valor inestimável, também a vida em família e em sociedade devia ser estimada dando valor às memórias de cada pessoa valorizando a história da vida de cada um e de cada família e, consequentemente, de todo um país sendo necessário registar as memórias onde se cruzam as histórias das famílias com a História do país. “Tudo aquilo que se relaciona com essa pessoa torna-se uma recordação que lutámos para reter, e é traição esquecer isso. Esquecer como ele bebia café. Esquecer como se ria. Como olhava para cima. Mas, ainda assim,
esquece-se. A vida exige que se o faça.” (p. 75) “Constitui algum alívio seguir em frente com a vida,
um conforto que, no entanto, se torna amargo quando se trata mal a vida, se faz algo que nos atormentará eternamente, mas é de tudo às nossas próprias recordações que tentamos chegar, são elas o fio que nos une à vida.” (pp. 82-83).
Jón Kalman Stefánsson apresenta-nos, pois, uma obra que não deixará certamente os seus leitores indiferentes com a garantia de mergulharmos num livro apaixonante tal como se pretende que seja a vida de cada um, uma viagem inesquecível.
Paraíso e Inferno assume-se, deste modo, como um verdadeiro tratado sobre a amizade e o amor pelo próximo apresentando os livros como um antídoto contra a solidão e a redenção dos homens. “As palavras ainda parecem capazes de comover as pessoas, é inacreditável, e talvez a luz não esteja completamente extinta no seu interior, talvez permaneça alguma esperança, apesar de tudo.” (p. 32) As nossas palavras são equipas de salvamento confusas com mapas obsoletos e cantos de passarinhos em vez de bússolas. Confusas e verdadeiramente perdidas, a sua função é, contudo, a de salvar o mundo, salvar vidas terminadas, salvar-nos e então, esperemos, também nos salvar.” (p. 83)
Texto da autoria de Jorge Navarro
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