Não se tratando propriamente de um livro policial ou um qualquer thriller, “A Invenção do Amor” apresenta-se como um romance em que o leitor entra na vida de Samuel, 43 anos, com uma vida desprovida de pessoas, sentimentos e, no fundo, sentido. Samuel é sócio-gerente de uma empresa de materiais de construção que está na eminência de ser comprada por um grupo de empresários kosovares suspeitos de lavagem de dinheiro entre outras atividades ilícitas.
A par da atividade profissional em que Samuel pouco ou nada se envolve não tendo consciência das consequências que a crise que afeta igualmente a Espanha sobretudo no que diz respeito ao mercado imobiliário, Samuel é confrontado com um estranho telefonema em que recebe a notícia de que Clara, a antiga amante, tinha falecido na sequência de um acidente automóvel.
Intrigado com o telefonema, Samuel decide deslocar-se ao local onde se realiza o velório de modo a tentar compreender quem afinal foi Clara, uma vez que todos os presentes o reconhecem como o amante da falecida.
A partir daqui, Samuel embarca numa verdadeira roda vida tentando compreender o que está a acontecer na sua vida ou o que terá acontecido sem que se tivesse apercebido. É nesta tentativa de busca da verdade que Samuel e o leitor trilham o caminho da introspeção face a questões de ordem muito pessoal e ao modo como encaramos a vida e o que deixamos de fazer gradualmente à medida que deixamos de olhar para a vida com um sentido ou um objetivo tornando-nos indivíduos cada vez mais afastados dos familiares, dos amigos, da sociedade em geral.
Ao longo do livro, Samuel quando questionado por terceiros sobre a sua relação com Clara, inventa um conjunto de histórias, mentindo assim, sobre algo que na verdade não aconteceu, mas que gostaria, de alguma forma que tivesse acontecido. O que é curioso é que Samuel vai embarcando nesta saga dado que nada tem a perder na tentativa de construir uma vida com sentido a partir de uma história alucinante que tanto pretende que efetivamente se torne a sua história, a sua vida.
A escrita de José Ovejero é pragmática e apelativa trazendo para a literatura vários temas que poderão ser encarados como verdadeiros lugares-comuns que não deixam de ser questões com que todos nós nos defrontamos uma ou outra vez ao longo das nossas vidas.
O binómio invenção-mentira atinge nesta obra o seu expoente máximo na medida em que chegamos ao fim do livro e acabamos por perceber que o mistério ficará por resolver à semelhança do mistério da própria vida que seguindo o seu curso natural, há momentos em que seremos nós a tomar pulso e inventar-mentir alguns cenários e circunstâncias como meio de alcançar ou vislumbrar um dado objetivo ou sentido das nossas vidas.
Excertos:
“Já passámos dos quarenta, os seis, já assomámos a esse precipício, à queda desde lá de cima, se é
que algum de nós chegou lá acima, assomámos também às possibilidades, a uma promessa de
mudança. Os quarenta, vendo bem, não são nada por aí além; às vezes, ainda levantamos a cabeça e perguntamo-nos: «Porque não?» Ainda estou a tempo», e, quais perdigueiros, farejamos um rasto entre as moitas que foram crescendo pelos caminhos abandonados, porque há anos que percorremos a mesma estrada, sem nos atrevermos a meter-nos por um desvio. E, depois de vislumbrarmos essa possibilidade, continuamos a ruminar placidamente as nossas vidas, nem muito felizes nem muito infelizes. Moderadamente satisfeitos, fazemos a digestão dos nossos sonhos.” (p. 11)
“Há uns meses, o meu televisor avariou-se. Será um sinal de saúde mental ou de preguiça não me ter dado ao trabalho de chamar alguém para o consertar? Há quase quatro anos que moro sozinho. Um homem que vive sozinho acaba por se transformar numa versão esbatida de si próprio: vão-se instalando pequenas manias na sua vida quotidiana, como jantar de roupão ou deixar os pratos sujos empilhados no lava-loiça, lavando-os apenas à medida que precisa deles, ver televisão até às tantas, passar o fim-de-semana de pijama, perder tempo com jogos de computador. Os homens que moram sozinhos, a partir de uma certa idade, quando deixam de acreditar que a vida de casal poderia ser agradável ou excitante, é frequenteterem pouca vida social; as mulheres, incluindo as resignadas ou decididas a ficar solteiras, como aquela amiga que me disse: «A minha metade inferior deixou de me interessar», mantêm contactos, saem, falam de si próprias e de outras amigas, necessitam de pele, de voz, de intensidade, do mesmo modo que os homens necessitam de distância, de silêncio, de indiferença. Talvez eu ainda não tenha atingido essa idade ou essa resignação e, por conseguinte, ainda me esforço por combater a tentação de não tomar duche se não for sair, de não fazer a barba ou não mudar de cuecas, de deixar a loiça suja em cima da mesa, de estar dias sem telefonar a ninguém. Embora não tenha muitos amigos e tão-pouco sinta a falta de uma vida social mais intensa, esforço-me por evitar a sensação de enclausuramento, de relação doentia com ecrãs e aparelhos, com espaços fechados, com o ruminar monótono da minha consciência, com a embaraçosa existência de quem não é capaz de sentir mais do que quando lhe impingem um drama televisivo.” (pp. 49-50)
“O maior inimigo da felicidade não é o sofrimento, mas o medo. Para estar realmente vivo, tem de se estar disposto a pagar um preço por aquilo que se obtém. E é aqui que eu falho. Estou a ficar preguiçoso; custa-me pagar para obter e tenho tendência a conformar-me com o que me sai de graça, ou seja, com pouco.” (p. 50)
Texto da autoria de Jorge Navarro
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