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sexta-feira, 3 de agosto de 2018

A Escolha do Jorge: "O Dia de Amanhã"


Todos, todos os amigos e conhecidos daqueles anos ficavam sob suspeita, e esta parecia contaminar tudo: as pessoas, o sítio, a própria época.” (p. 82)
Ler “O Dia de Amanhã” é mergulhar a ferro e fogo nas décadas de 60 e 70, numa época em que o regime franquista continuava a marcar o país vizinho do ponto de vista político ainda que desse já alguns sinais de enfraquecimento. Passada maioritariamente em Barcelona, esta narrativa retrata-nos uma sociedade que faz o que pode para sobreviver face às agruras da ditadura, assim como de todos aqueles que beneficiam do exercício de funções num estado ditatorial, fazendo-se notar o grande desejo de uma qualquer revolução iminente que nunca aconteceu ou o desejo da morte do ditador que só acontece em 1975, altura em que a Espanha instaura o regime democrático, à semelhança do que tinha acontecido no ano anterior, em Portugal.
Ignacio Martínez de Pisón (n. 1960) consegue de forma magistral fazer a fusão entre literatura e historiografia, uma vez que perdemos a noção onde começa uma e a outra. Com uma escrita elegante tanto quanto apaixonante, e com o suporte de uma tradução rigorosíssima, o leitor ao longo de quase trezentas páginas mergulha num período conturbado da vizinha Espanha que, em variadíssimos aspectos, tem muito em comum com a História recente do nosso país.
Personagens bem fundamentadas, com personalidade forte, com a descrição do seu dia-a-dia, dão, no seu conjunto, a ideia de como se teria vivido nos anos 60 e 70 na cosmopolita Barcelona. Ao longo da narrativa vão desfilando um leque variado de personagens que se vão intercalando e que nos contam não só o seu cadinho de história que, no fundo, vão construindo aquele retrato da Espanha franquista, mas também são esses mesmos personagens que nos vão dando a conhecer quem foi Justo Gil.
Justo Gil é um emigrante que chega a Barcelona com o desejo de uma vida que nunca teria na sua longínqua aldeia e que, graças à sua esperteza e todo um conjunto de artimanhas, consegue tudo por tudo para também sobreviver no seio do regime.
Justo Gil é seguramente um dos personagens mais incríveis tanto quanto horríveis que a literatura pode alguma vez conseguir. Poucos são aqueles que conseguem fugir ao poder sedutor de Justo Gil, ainda que se trate de uma das figuras mais hediondas que podem alguma vez existir.
Se “O Dia de Amanhã” é um livro electrizante, deve-o em grande parte à figura de Justo Gil de quem alguns dos personagens, e até o leitor, acabam por ter pena (?), pois, nalguns casos chegaram mesmo a nutrir amizade e afecto por ele.
Justo Gil é um indivíduo camaleónico que se adapta a todas as dificuldades e circunstâncias no intuito de sobreviver num regime asfixiante, tendo mesmo acabado por se tornar num eficiente informador, o Ratazana, a alcunha com que ficou conhecido, da Brigada Social, a polícia política do regime franquista.
Tudo vale para Justo Gil! De boa aparência e com falinhas mansas, é difícil não cair no conto do vigário. Tanto no que concerne à forma com que se aproxima das mulheres no intuito de lhes extorquir dinheiro e também por puro prazer físico, Justo Gil não sente qualquer pudor em abandonar as mulheres que lhe demonstraram afecto.
Quanto às amizades, não deixa de ser curiosa a forma como se aproxima das pessoas com a finalidade de as denunciar ou de denunciar terceiros à Brigada Social.
Justo Gil é um verdadeiro crápula, um facínora social que partilha da desgraça alheia para a aniquilar, unicamente com a intenção de ganhar reconhecimento e dinheiro a partir de um sistema decrépito.
Tal como acontece com a queda das ditaduras, a sociedade procura equilibrar-se e reajustar-se na nova conjuntura política, com a instauração da democracia e, nos sectores mais conservadores, o recurso ao silêncio e às aparências da defesa do liberalismo são uma constante em oposição à vergonha que sentiriam ao serem apontadas como defensoras dos valores franquistas.
Neste aspecto, Justo Gil também se soube adaptar às novas circunstâncias políticas. De informador e delator no regime franquista, passa a ser um dos infiltrados num dos movimentos de extrema-direita na Catalunha, durante os primeiros anos da democracia.
Mais uma razão pela qual “O Dia de Amanhã” é uma obra tão significativa, grandiosa até. Ajuda-nos a compreender as manifestações e rebelião que têm decorrido na Catalunha ao longo do último ano na tentativa de esta província alcançar a independência.
Não aludirei ao fim de Justo Gil ainda que se possa apresentar mais ou menos previsível, justo, quiçá, como que de alguma forma o seu nome assim o exigisse.
“O Dia de Amanhã” é, pois, uma obra marcante e inesquecível e que ao mesmo tempo nos transporta para um passado recente e que tanto tem condicionado as décadas da democracia em Espanha.

Excertos:
"Como é que não havíamos de ser franquistas se foi Franco quem nos tirou da rua e nos deu cama, comida, educação, trabalho...?, diz Mateo Moreno. Para os meninos-bem, os que tinham pai e mãe e casa própria, era muito fácil ser antifranquista. A nós, aos que crescemos nos Hogares Mundet, isso nem sequer nos passava pela cabeça. Possuíamos poucas coisas, mas as que tínhamos devíamo-las ao regime, e quem não é agradecido não é bem-nascido." (p. 85)
"O pouco que sabia do Justo estava de acordo com a ideia que se tinha dum informador da polícia: a presença em Montserrat, o hábito de apontar tudo o que se dizia, a atitude esquiva, própria de quem tem muito a esconder... Lembrei-me dos livros que o vira comprar, mas onde é que está escrito que um bufo não pode ter um fraquinho por Santa Teresa e São João da Cruz? Lembrei-me também da frase dele sobre a purificação através da palavra: uma afirmação significativa vinda de alguém como ele, que usava o poder da palavra para sujar e não para limpar, para fazer mal e não para curar." (pp. 201-202)
"O liberalismo desprezado pelos franquistas, imaculado, oferecia-se agora como uma árvore boa para se encostar, e muitos conservadores limitavam-se a trocar um abrigo por outro: a sombra protectora do franquismo pela sombra protectora do liberalismo. A minha aproximação à extrema-direita não era, pois, uma coisa de que pudessem sentir-se orgulhosos lá em casa, porque lhes recordava a sua própria deslealdade. Lá no fundo, talvez me tivesse ligado a essa gente só para atirar à cara dos meus pais a cobardia e a mediocridade deles. Nessa altura, não gostava nada dos meus pais: ele tão submisso, tão cumpridor, a tratar das contabilidades dos vizinhos nas tardes livres, a fingir um interesse excessivo pela saúde dos clientes, e ela tão arranjadinha e tão poupadinha, tão própria com aqueles seus casaquinhos de malha que já ninguém usava, sempre tão preocupada com a opinião dos outros.” (p. 243)

Texto da autoria de Jorge Navarro
cara dos meus pais a cobardia e a mediocridade deles. Nessa altura, não gostava dos meus pais: ele tão submisso, tão cumpridor, a tratar das contabilidades dos vizinhos nas tardes livres, a fingir um interesse excessivo pela saúde dos clientes, e ela tão arranjadinha e tão poupadinha, tão própria com aqueles seus casaquinhos de malha que já ninguém usava, sempre tão preocupada com a opinião dos outros."



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