«Este reino tem de acabar. Logo que o nosso Imperador fechar os olhos, desmanchamo-nos em cem bocados. Os Balcãs vão ser mais poderosos do que nós. Todos os povos vão fundar os seus estadozinhos miseráveis, e até os judeus vão aclamar um rei na Palestina.” (p. 127)
Escrito em 1932, “A Marcha de Radetzky” (1932) constitui uma das mais sólidas e icónicas obras de Joseph Roth (1894-1939), um dos escritores europeus mais importantes do século passado e, contudo, tão esquecido. Stefan Zweig (1881-1942), seu contemporâneo, escreve nas primeiras páginas, numa espécie de prefácio, exaltação do autor, da necessidade do seu reconhecimento perante um mundo em decadência, tecendo também algumas considerações sobre “A Marcha de Radetzky”.
“Dizer adeus é uma arte difícil e amarga, que estes últimos anos nos permitiram aprender amplamente, direi mesmo mais do que amplamente.” (p. 7), diz Stefan Zweig na introdução da obra.
Estes dois autores, recorrendo ao seu sentido apurado e de análise da sociedade do seu tempo, bem como do comportamento e mente humanas, reflectiram nas suas obras uma espécie de profecias para o que viria a acontecer na Europa e no mundo perante a ideia evidente de que os valores que caracterizavam e organizavam a cultura centro-europeia se encontravam em desagregação, tudo caminhava para um fim. “O declínio da velha cultura austríaca, plena de distinção, tornada impotente pela sua nobreza de alma, foi o que ele quis mostrar através da personagem de um Austríaco, derradeiro representante de uma raça em vias de extinção.”, refere mais à frente Stefan Zweig.
Pela introdução acima, “A Marcha de Radetzky” retrata os últimos cinquenta anos do Império Austro-Húngaro com a Batalha de Solferino, em 1859, até ao início da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Três gerações da família Von Trotta são aqui retratadas, ligadas todas à vida militar, das quais, o primeiro, o avô, recebe o título de barão Von Sipolje (aldeia eslovena) na sequência de ter quebrado o protocolo e ter protegido o Imperador Francisco José de ser alvejado, ficando também conhecido como o Herói de Solferino.
Com o passar dos anos, o Herói de Solferino caiu no esquecimento ainda que no seio da família continuasse a servir de referência ao filho que se tornou comissário distrital e ao neto, Carl Joseph, tenente, no Império em decadência, mas mantendo a profunda lealdade ao Imperador.
Mesmo perante a ideia e até a evidência de decadência do Império, a simples ideia de lealdade constituía um sinónimo de conservação dos ideais de uma cultura e política centro-europeia comandadas pela figura do Imperador.
«Este reino tem de acabar. Logo que o nosso Imperador fechar os olhos, desmanchamo-nos em cem bocados. Os Balcãs vão ser mais poderosos do que nós. Todos os povos vão fundar os seus estadozinhos miseráveis (…).” (p. 127) O final do século XIX e início do século XX caracterizaram-se pela forte tensão nas várias regiões do Império Austro-Húngaro que lutavam a todo o custo pela sua independência, nomeadamente nos Balcãs, a sul, onde aumentava o foco de tensão, do mesmo modo que ao longo da narrativa se percebe da importância dos postos fronteiriços a leste com a Rússia.
A tensão aumentava não só a partir de dentro dos Impérios, mas também entre Impérios. O odor a desagregação andava no ar e a guerra era aguardada e ainda que se travassem batalhas aqui e acolá e se calassem eventuais tentativas independentistas, a guerra a uma escala alargada era inevitável. O assassinato do príncipe-herdeiro, Francisco Fernando, em Sarajevo, em 1914, constituiu a bomba-rastilho que desencadeou a Primeira Guerra Mundial (1914-1918).
“A Marcha de Radetzky” (1932) de Joseph Roth é uma obra que deve ser lida em parceria com “A Ponte sobre o Drina” de Ivo Andric (1892-1975; Prémio Nobel de Literatura em 1961) na medida em que ambas as obras retratam as mesmas temáticas, culminando com a guerra.
Enquanto “A Marcha de Radetzky” retrata o Império Austro-Húngaro nas regiões mais a norte e a leste e com um forte enfoque na relação e dependência com Viena, a capital imperial e a ligação ao imperador, “A Ponte sobre o Drina” retrata as regiões mais a sul, os Balcãs, e a dificuldade de articulação com Viena pelas diferenças culturais e sociais, pela não partilha dos mesmos ideais, daí os focos de tensão e desejos independentistas.
Contudo, em ambas as obras, denota-se a ideia de modernidade dos tempos, o que vai acontecendo um pouco por todo o Império em matéria de desenvolvimento até à entrada no século XX.
Joseph Roth em “A Marcha de Radetzky” faz a síntese de alguns dos seus romances, assim como do ensaio “Judeus Errantes” como forma de compreendermos a dinâmica social e cultural nas suas diversas vicissitudes.
“A Marcha de Radetzky” constitui, desta forma, uma das mais emblemáticas e importantes obras do percurso literário Joseph Roth cuja melancolia é palavra de ordem nas suas entrelinhas face a um mundo em desagregação nas vésperas do seu desaparecimento.
Uma obra singular em que a nostalgia e o sentimento de perda atravessa toda a narrativa com a escrita elegante e doce de Joseph Roth que agarra o leitor do princípio ao fim da narrativa.
Excerto:
“«Era assim que eu gostava de morrer, meu caro Slama!», disse ele em vez do habitual «Deus o acompanhe!», e foi para o salão.
Escreveu as disposições para a colocação no caixão e para o funeral do seu criado numa grande folha de papel da repartição, com todo o cuidado, como se fosse um mestre-de-cerimónias, ponto por ponto, com todos os efes e erres. Na manhã seguinte foi à procura de um túmulo, no cemitério, comprou uma pedra tumular e mandou gravar o seguinte: «Aqui repousa, na paz do Senhor, Franz Xaver Joseph Kromichl, chamado Jacques, velho criado e amigo.» E encomendou um funeral de primeira com quatro cavalos e oito acompanhantes de libré. Foi, passados três dias, a pé, atrás do caixão como única pessoa de luto, seguido a conveniente distância pelo sargento Slama e muitos outros que se juntaram porque conheciam Jacques e especialmente porque viam o senhor Von Trotta a andar a pé. E foi assim que um número considerável de funcionários do Estado acompanhou o velho Franz Xaver Kromichl, chamado Jacques, até à sua última morada.
A partir de então, o comissário distrital sentiu que a casa tinha mudado, que estava vazia e já não era acolhedora. Não voltou a encontrar o correio ao lado da bandeja com o pequeno-almoço, e até hesitava em dar novas indicações ao funcionário do serviço. Não voltou a tocar em mais nenhuma das suas campainhas de prata e quando, por vezes, à tarde, se punha à escuta pensava ouvir os passos de fantasma do velho Jacques a subir a escada. Por vezes ia ao quartinho em que Jacques tinha vivido e dava ao canário um torrão de açúcar, por entre as grades da gaiola.” (pp. 140-141)
Texto da autoria de Jorge Navarro
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