“(…)
A felicidade é pouco mais do que alguém a cantar por cima de uma
música (…).”
“Campo de Sangue” – Dulce Maria Cardoso
(Tinta da China)
Quase
duas décadas após a publicação de “Campo de Sangue”, o
primeiro romance de Dulce Maria Cardoso (n. 1964) regressa às
livrarias sob a chancela da Tinta da China que tem apostado na edição
das obras da escritora desde o aclamado romance “O Retorno”
(2011).
“Campo
de Sangue” é um romance tenso e violento, evoluindo num crescendo
de asfixia até o leitor ser esmagado perante a evidência da
tragédia anunciada na abertura.
A
narrativa alude recordar, em certa medida, aos romances de H. G.
Cancela no que respeita aos poucos personagens existentes, o ambiente
tenso em que se movem e o culminar de um crime.
A
narrativa desenrola-se a partir de uma sala de interrogatório onde
quatro mulheres que, aparentemente, nada têm em comum entre si a não
ser o facto de terem ou terem tido uma relação com o responsável
do crime.
A
mãe, a ex-mulher, a senhoria e a rapariga grávida são as mulheres
que aguardam de forma impaciente a sua vez para serem ouvidas na
tentativa de poderem dar luz, alguma explicação ao acto hediodo que
fora cometido pelo homem. Não falam entre si, mas cada uma culpa as
demais presentes, em pensamento.
“Mas
cada uma das três mulheres culpa as outras e é isso que as desune,
atiram para as outras o dever de o salvar, é acima de tudo a culpa
que as desune.”
“Campo
de Sangue” é passado numa cidade nos dias que correm e reflecte,
na sua essência, a complexidade das relações humanas no contexto
de uma sociedade que tende a isolar-se, fragmentar-se, a perder-se,
talvez, e onde todos, com as suas vicissitudes nos tornamos culpados
dado o nosso contributo, mas também inocentes porque não soubemos
fazer melhor.
À
medida que a narrativa evolui, o leitor vai ficando cada vez mais
inquieto, por vezes até dilacerado, porque há palavras,
pensamentos, histórias que magoam e que também não temos para onde
fugir ou onde nos podemos esconder. A culpa…
A
mãe disse que “um filho pode ser um azar muito grande que ninguém
consegue explicar.” Palavras que ferem, palavras que nunca deveriam
ou poderiam ser ditas porque são contra a natureza de ser mãe. “(…)
A única coisa que se tem é tanta vergonha que os olhos dos outros
nos queimam”, continua.
Eva,
a ex-mulher, é também um reflexo da complexidade das relações
amorosas na medida em que, separa-se para poder levar a vida de
mulher rica, sem preocupações, mas nunca deixou de amar o
ex-marido, pagando-lhe o alojamento e alimentação com o dinheiro do
marido que nunca amou. “Não consegues amar-me, não consigo deixar
de te amar, somos dois casos perdidos”, disse Eva ao ex-marido.
“Tens muito tempo e o tempo por gastar é perigoso. O tempo é uma
coisa que só existe para se gastar, para se gastar rapidamente”,
disse-lhe Eva noutra altura.
Eva
acusa a ex-sogra de toda a situação, do crime que veio a perpetrar.
“Se o amasse como devia nunca teria deixado de acreditar que o
filho podia ser alguém na vida, nunca o teria deixado dormir em
restos de lençóis por bordar, os que sobravam e que lhe davam azar
aos sonhos. Se a mãe o amasse como devia, teria acreditado que eles
podiam ser felizes e a mãe nunca acreditou.”
A
rapariga grávida, igualmente presente na sala, desejava que
passassem depressa os quatro últimos meses da gravidez para que o
seu tormento acabasse e se visse livre da criança não desejada e de
toda aquela história não calculada. Um envolvimento fugaz com o
potencial assassino que se viu seduzida pelas promessas (com o
dinheiro da ex-mulher) e deslumbramento daquele homem mais velho em
relação a si enquanto jovem. A rapariga grávida foi assim seduzida
passando a fazer parte de uma história pérfida com um mau fim, sem
dar importância ao dia de amanhã que tanto poderia ser na cama com
esse indivíduo ou outro, tanto poderia abandoná-lo quando se
entediasse ou ser abandonada, tanto fazia, estava por tudo, tudo
valia e assim era porque já tinha passado por tudo isso outras vezes
no seu passado recente.
“Já
te dei o meu coração, já não o posso dar a ninguém, mas estava
farta de tanto amor, disse-lhe muito séria, se queres viver comigo
tens que confiar em mim porque não gosto que me prendam, um pardal
também morre se o aprisionam, sobrevive apenas na rua.”
A
senhoria, uma senhora de idade, proprietária de uma pensão
decadente, com ordem camarária de despejo devido ao perigo que
derrocada iminente do prédio. É a quarta mulher à espera de ser
interrogada em virtude de ter sido o local onde foi cometido o crime.
A senhoria é uma das figuras centrais da narrativa. Se nos diverte
por um lado, pela sua forma de falar, pelos estratagemas que utiliza
na tentativa de manter em pé o prédio e a pensão, o seu ganha-pão,
é também a personagem que reflecte aquela forma comezinha e tacanha
da mentalidade bem portuguesa, uma herança tenebrosa, horrenda, uma
sombra salazarenta ainda tão bem vincada e demarcada na mentalidade
e forma de estar do nosso país. A senhoria é o oxigénio envenenado
que nos mortifica o corpo e a alma, é a pobreza de espírito e a
miséria latente e que se lamenta em cada intervenção que faz. Se
nos diverte por um lado, até porque é das personagens bem definidas
e conseguidas, por outro lado também nos magoa e envergonha porque é
um espelho fidedigno de uma parte do país, triste, cinzento.
Mas é preciso procurar nos
interrogatórios a origem do mal. Qualquer uma das mulheres que
conviveu de perto com aquele que veio a ser criminoso, quando é que
terá percebido do traço agressivo da sua personalidade, nas
palavras e nos actos? Desconfiariam alguma vez que semelhante
indivíduo, pacato, quase invisível perante todos, fosse capaz de
cometer semelhante acto terrível, um verdadeiro campo de sangue?
Poderemos
até questionar se no que concerne a comportamentos obsessivos, o que
é que define, o que é que é preciso dizer ou fazer antes de alguém
perder por completo o controlo das suas emoções ao ponto de ser
capaz de matar de uma forma selvática? Qual é a linha que separa a
razão da loucura? Quem são os loucos que estão ao nosso lado sem
que se dê por isso? Não estaremos nós próprios loucos e não
damos por isso? Será o mal a origem da loucura ou a loucura a origem
do mal? “Comiam e dormiam juntos e no entanto não sabiam quase
nada um do outro, ilhas, uma ausência de amor rodeada de amor.”
A
narrativa avança, procura responsáveis ou pelo menos os
co-responsáveis face ao assassinato cometido, mais não seja como
forma de lavar as mãos e a consciência também perante algo que não
se fez, não se conseguiu prever a tempo.
Falamos
em sociedade porque é sempre mais fácil de falar em alguém ou
naqueles que não têm rosto, é o monstro dos nossos dias que
adquire proporções inimagináveis, capaz de cometer tudo o que, em
consciência, e dotados de razão não imaginamos, mas que, em
conjunto, todos fazemos parte do mesmo processo, da mesma massa, dos
mesmos órgãos, cérebro, sangue. E culpa…
“Quando
espetei a faca à procura do coração que sempre pensei estar a meio
do peito, verifiquei que a carne ainda é mais mole do que parece. A
faca entrou com tamanha facilidade que me pareceu estar a espetar um
pedaço maior de pão. Claro que foi só até apanhar os ossos. Os
ossos são muito difíceis ou talvez a faca não estivesse
suficientemente afiada ou não fosse adequada. Mas abrir o peito a
alguém não é difícil.
Difícil
é tirar o coração a alguém.”
Texto da autoria de Jorge Navarro
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