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quinta-feira, 28 de maio de 2015

A Escolha do Jorge: A Nossa Casa É Onde Está O Coração

"Home – A Nossa Casa é onde está o Coração" é a mais recente publicação da norte-americana Toni Morrisson (n. 1931; Prémio Nobel de Literatura em 1993) em Portugal após a edição de "A Dádiva"(2010), através da Editorial Presença.
Passado maioritariamente numa pequena localidade da Geórgia, "Home" conta-nos a história de Frank Money que decidiu alistar-se para a Guerra da Coreia (1950-1953) juntamente com dois dos seus amigos de infância no intuito de poder sair da sua terra natal que não lhe oferecia quaisquer garantias de um futuro melhor. Tornar-se um veterano de guerra à semelhança daqueles antigos combatentes durante a 2ª Guerra Mundial trariam glória e alguma perspetiva futura à sua vida.
É neste contexto que Frank deixa para trás a sua família que em boa verdade pouco se importa consigo, exceptuando a sua irmã Cee a quem protegia dos amigos mais velhos e que o acompanhava em todas as brincadeiras. Tratando-se de uma família tão ausente como até maléfica para com as crianças sobretudo por parte dos avós que os maltratavam (a avó Leonore agia e o avô Salem consentia) tanto física como psicologicamente.
É durante a guerra que Frank vai conhecer os maiores horrores a que qualquer ser humano pode ser submetido e que nunca deveria acontecer. Falamos não só de toda a espécie de crimes consentidos em ambiente de guerra em nome de um dos beligerantes envolvidos (e neste caso em particular, nem sequer se tratava de uma guerra sua ou do seu país) independentemente de as vítimas se tratarem de crianças inocentes culminando mesmo com o assassinato de tantos civis que são apanhados de surpresa neste género de conflitos que infelizmente não são acautelados por quem governa cada país.
Frank fica ainda mais abalado quando os seus amigos de infância são mortos na guerra, mesmo nos tempos a seguir à guerra que, não tendo para onde ir e não sendo propriamente desejado na sua casa na terra natal, acabou por vagabundear durante mais de um ano sem dar notícias limitando-se apenas a informar a família que estava de regresso aos EUA, tendo, pois, ao conflito na longínqua Coreia, numa guerra que afinal também não era a dele.
Deambulando por aqui e por ali sem objetivos determinados, Frank (re)age como se fosse um zombie em certas alturas deixando de interagir com as pessoas à sua volta, além de que vive momentos parado num dado instante, sem espaço e sem tempo, revivendo momentos intensos da recente guerra.
Tudo está prestes a mudar quando Frank recebe notícias sobre o estado crítico da sua irmã Cee que tendo sido alvo de experiências médicas por parte do seu patrão, corria o risco de vida. Frank mete-se a caminho atravessando vários estados com o fito de ir buscar a sua irmã, levando-a para a terra natal, na Geórgia, entregando-a ao cuidado de algumas senhoras que eram conhecedoras de todo um saber ancestral que passou de geração em geração, através das mulheres. Através de plantas e mezinhas, e com a graça da natureza, Cee é salva, deixando o leitor quase incrédulo com todas as descrições e sapiência daquelas mulheres que se uniram contra a doença que quase vitimou mortalmente a jovem.
É de facto este género de laços entre as mulheres que marca este "Home" de Toni Morrison que, longe de ser um romance doce e gentil (tendo em consideração o título em português), apresenta em vários momentos da narrativa a dureza proveniente da força das palavras, assim como os vários exemplos de crueldade que são cometidos.
Outro aspeto a ter em consideração é o temor a Deus por parte das mulheres desta pequena comunidade exemplificado através de um dos momentos mais significativos da narrativa quando as mulheres não deixam de praticar o bem a Lenore que sempre as prejudicou enquanto era capaz. No seu entender, mesmo com uma doença incapacitante, as mulheres não deixaram de ajudar a sua família. "Tinha portanto de contentar-se com a companhia da pessoa que mais prezava – ela própria. Talvez tenha sido essa associação entre Lenore e Lenore que provocou a pequena trombose de que foi vítima numa sufocante noite de julho. Salem encontrou-a ajoelhada ao lado da cama e correu a casa do Sr. Haywood, que a conduziu ao hospital de Mount Haven. Aí, após uma longa e perigosa espera no corredor, recebeu finalmente tratamento, que evitou males maiores. Ficou com a fala entaramelada, mas movimentava-se – com muito cuidado. Salem ocupou-se das suas necessidades básicas, mas sentiu-se aliviado ao descobrir que não conseguia compreender uma só palavra dela. Pelo menos, era o que ele dizia. As vizinhas que frequentavam a igreja e eram tementes a Deus deram uma prova de boa vontade ao levarem-lhe pratos de comida, varrerem-lhe o chão e lavarem-lhe a roupa; ter-lhe-iam igualmente dado banho se o seu orgulho e a sensibilidade delas o não proibissem. Sabendo que a mulher que ajudavam as desprezava a todas, não precisavam sequer de dizer em voz alta o que compreendiam ser verdade: os caminhos do Senhor são insondáveis para operar as Suas maravilhas." (pp. 89-90)
Toni Morrison consegue assim devolver a paz e a harmonia aos irmãos Frank e Cee ligando-os através do lar da infância que aqui se apresenta como um refúgio para reorganizarem a vida ainda que seja num local longínquo de tudo até porque compreenderam que, fora dali, a vida também é cruel e porque para recomeçar a vida, nada melhor do que a sua própria casa.
"Home" é, pois, um pequeno grande romance pejado de sentimento, emoção, compaixão e de grandes exemplos que têm como base valores universais que servem de referência para todas as gerações não importando qual a origem, seja ela mais humilde, cujo conhecimento se baseie no conhecimento empírico da natureza.


Excertos:
"Cee estava diferente. Dois meses rodeada de mulheres do campo, avaras no amor, transformaram-na. Aquelas mulheres tratavam a doença como se fosse uma afronta, um fanfarrão invasor e ilegal que precisava de ser chicoteado. Não perdiam o seu tempo nem o da doente com gestos de compaixão e acolhiam as lágrimas da sofredora com um desdém resignado.
Primeiro as hemorragias: «Afasta os joelhos. Isto vai doer. Caluda. Caluda, já disse.»
A seguir, a infeção: «Bebe isto. Se vomitares, tens de beber mais, portanto, não vomites.»
Depois a cicatrização: «Para com isso. O que arde cura. Cala a boca.»
(…)
- Os homens reconhecem um bacio quando o veem.
- Não és uma mula para puxar a carroça de um médico malvado.
- És uma latrina ou uma mulher?
- Quem te disse que eras lixo?
- Como é que eu havia de saber o que ele engendrava? – tentava Cee defender-se.
- A desgraça não se anuncia. É por isso que tens de permanecer desperta, senão ela limita-se a entrar pela tua porta.
- Mas…
- Mas nada. Tu és suficientemente boa para Jesus. É tudo o que precisas de saber.
(…)
A última etapa da cura de Cee fora, para ela, a pior. Tinha de ser açoitada pelo sol, o que significava passar pelo menos uma hora por dia de pernas bem abertas perante o sol escaldante. Todas as mulheres concordavam que esse abraço a libertaria de qualquer resto de doença uterina. Cee, chocada e embaraçada, recusara. Supondo que alguém, uma criança, um homem, a via assim escarranchada?
- Ninguém vai estar a olhar para ti – responderam elas. – E se olharem? O que tem?
- Achas que a tua rata é uma novidade?
- Não te preocupes – aconselhou a D. Ethel. – Estarei contigo lá fora. O importante é conseguir uma cura permanente. Algo que ultrapasse o poder humano.
Portanto, Cee, virando a cabeça de tão envergonhada, deitava-se apoiada em almofadas à beira da minúscula varanda das traseiras da casa de Ethel assim que os violentos raios de sol apontavam nessa direção. A cólera e a humilhação levavam-na sempre a curvar os dedos dos pés e a contrair as pernas.

Texto da autoria de Jorge Navarro

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