O francês Jean Meckert (1910-1995) foi publicado pela primeira vez em Portugal, em 2013, com o pequeno livro "Abismo e Outros Contos" através da Antígona. Trata-se de um pequeno livro que provoca no leitor momentos de inquietação assim como o desejo de ler outras obras do escritor.
"Golpes", o primeiro romance do escritor, chegou-nos no início deste ano como um bom augúrio do panorama editorial, apresentando-se como uma obra de referência para todos aqueles que lutam contra certo tipo de regras e convenções criadas pela sociedade que tantas vezes não consegue resolver os problemas e situações que ela própria cria (que todos, em conjunto, criamos). http://otempoentreosmeuslivros.blogspot.pt/2015/02/a-escolha-do-jorge-golpes.html
"Somos Todos Assassinos" é a terceira aposta da Antígona dando assim continuidade à divulgação da obra de Jean Meckert que, a convite de Gaston Gallimard, em 1952, escreve este romance alusivo à pena de morte em França abolida somente em 1981.
O cenário de "Somos Todos Assassinos" é a cela de uma prisão onde estão condenados à morte três prisioneiros, todos eles por crimes por homicídio. Ao longo do romance vão sendo desfiadas as várias histórias e circunstâncias que estiveram por trás de cada um dos crimes/assassinatos cometidos e que serão "pagos" numa qualquer madrugada que chega sem aviso prévio.
Os personagens centrais da obra vivem assim os dias na ilusão de verem respondidos positivamente os seus pedidos de clemência por parte do Presidente da República cujo ato nunca acontece, cumprindo-se, neste sentido, a justiça na verdadeira aceção da palavra. O acordar a cada manhã ilude os prisioneiros com uma nova esperança de que afinal ainda há solução face à atual situação de calabouço, mas é com a chegada da noite que chegam as incertezas face à possibilidade de viver um novo dia perante a chegada iminente dos carrascos que prepararão o tão aguardado dia como forma de cumprimento de uma justiça maior.
Uma vez mais, Jean Meckert não poupa nada nem ninguém aos seus juízos de livre pensador. Para quem já leu outra(s) obra(s) do escritor tem a perceção de se tratar de um indivíduo que não está preso a regras e convenções, bem pelo contrário. Os espíritos livres não se apegam a grilhões que condicionam a sua liberdade! Nas suas obras não há espaço para imposições seja de que natureza for, a não ser a da boa convivência entre os homens capaz de gerar, por si só, a harmonia entre as pessoas. Pura utopia, é certo, mas Jean Meckert apresenta-nos nas suas obras homens e mulheres, jovens e até crianças que vivem no limiar da pobreza, lidando com a rejeição permanente da sociedade que determinou, em primeira instância, as regras, e afinal não conseguiu integrar estes mesmos indivíduos conseguindo, de alguma forma, a sua reorientação no que respeita a determinar o sentido da vida que a tão portentosa sociedade estabeleceu.
Ler "Somos Todos Assassinos" mais de meio século depois da sua publicação deixa-nos não só inquietos como já foi referido acima, mas igualmente conscientes de que a sociedade pouco evoluiu em matéria de mentalidade durante este período.
Atentemos, pois, em René, um dos prisioneiros condenados à morte. René faz parte de uma família desestruturada, sem pai, mãe alcoólica, irmã prostituta e irmão que se encontra numa família de acolhimento e que se aproveita do facto de ter mais um elemento, explorando-o ao máximo, sendo tratado como os animais que tem à sua guarda, não indo por isso mesmo à escola e nem tão-pouco sente essa necessidade porque não lhe é permitida essa consciência.
Este conjunto de histórias não é de forma alguma assim tão diferente de tantas outras histórias que ouvimos na comunicação social. As histórias que nos chocam são precisamente as histórias que chocaram Jean Meckert há mais de meio século e passado todo este tempo, as agressões físicas e psicológicas a crianças e jovens continuam a estar na ordem do dia.
O jogo de "colocarmo-nos no lugar do outro" é um recurso frequente nas obras de Jean Meckert na medida em que o leitor é levado a "deambular" no perverso jogo do inconformismo atroz criado, afinal, por todos os seus "jogadores", vulgo, elementos da sociedade. Assim, se por um lado é lícito questionarmos e pormos em causa a integração daqueles que não se ajustam às suas regras, por outro lado, é igualmente lícito o inconformismo dos desfavorecidos que nunca ou raramente tiveram oportunidade de seguir um rumo de liberdade tendo em vista uma vida minimamente decente capaz de satisfazer as suas necessidades mais elementares.
Podemos então questionar onde está a justiça sobretudo quando o próprio capelão na tentativa de reconciliar os condenados perante Deus afirma "Somos todos assassinos" na sequência de o seu interlocutor ter afirmado "Não acredito na confissão feita no terror (…). Mas recusar a um indivíduo a oportunidade de se arrepender ou de se emendar, a isso chamo eu um crime!" (pp. 107-108) O condenado remata ainda: "Se Ele sabe tudo (…), porque é que nos deixa na merda? Daqui não saio, senhor padre. Se Deus sabe tudo, as misérias, as guerras e tudo isso, então Ele é mais assassino nojento do que nós todos! E ainda por cima perverso, a querer-nos julgar!" (p. 109)
Jean Meckert atiça-nos completamente face aos grilhões da injustiça com a sua ironia, humor e argúcia. É o seu inconformismo que nos deixa inconformados na mesma medida. O jogo de papéis e de imagens chega a ser de uma nitidez fotográfica que atinge um dos momentos altos na descrição do ritual de preparação do condenado rumo ao cadafalso. É simultaneamente arrepiante e doloroso as descrições de Jean Meckert capazes de nos transportar para o local até mais do que num filme!
"Somos Todos Assassinos" levanta inúmeras questões sobre a pena de morte sobretudo aquela que é a pior de todas, capaz de alterar a cadência da linguagem. A dúvida. A dúvida que faz toda a diferença. E se…? E se, afinal, o condenado à morte está isento de culpa? Quem assume a culpa do inocente em nome de uma justiça que afinal se revelou injusta? Quem assumirá essa culpa? Perante casos irremediáveis como este, que nos sirvam ao menos de consolo as palavras do capelão: "Ninguém é um caso perdido. (…) Tu és imortal e insubstituível. Quando chegares ao dia do Juízo Final, Nosso Senhor verá a sinceridade do teu arrependimento, pois cada um de nós será avaliado e julgado segundo as suas obras e a pureza do seu coração." (p. 108)
Jean Meckert é, desta forma, um escritor que abana e arrasa as consciências tornando a literatura num espaço de reflexão sobre o modo de organização da sociedade em que vivemos. Em jeito de conclusão, o autor afirma "A sociedade exigia menos a inocência do que a submissão. Era a sua natureza." (p. 205)
Texto da autoria de Jorge Navarro
Sem comentários:
Enviar um comentário