Trinta e nove anos depois da sua publicação, “Portugal, a Flor e a Foice” é editado no nosso país e será certamente um livro que com esta distância de tempo ainda irá incomodar muitas pessoas que se por um lado fizeram parte do regime ligado ao Estado Novo, também acabaram por desempenhar um papel importante no período após o restabelecimento da liberdade na sequência do 25 de Abril de 1974.
Com uma visão crítica reflexo de um olhar atento, José Rentes de Carvalho levanta sistematicamente duas questões ao longo de toda a obra, a primeira tem a ver com a incompetência e falta de preparação dos governantes portugueses desde o tempo da monarquia até 1975 que nunca souberam apostar e desenvolver verdadeiramente o país do ponto de vista económico criando uma sociedade mais justa e dinâmica e a segunda, como consequência dos aspetos anteriores, obrigou sucessivamente os portugueses a tentarem a sua sorte através da emigração, fenómeno que está associado à população portuguesa sobretudo desde os Descobrimentos a partir do século XV.
O que é verdadeiramente surpreendente em “Portugal, a Flor e a Foice” é a linguagem utilizada dando a sensação de que o livro foi escrito recentemente, no seguimento da atual conjuntura de depressão económica e social que o país vive que, de resto, tem sido uma constante desde o início da nacionalidade.
Ler hoje “Portugal, a Flor e a Foice” leva-nos a questionar o que terá mudado em Portugal para que ao longo de séculos sucessivos continuarmos a praticar os mesmos erros que têm sempre as mesmas consequências e as mesmas vítimas, os mais pobres de entre a população. Aqui, quando se refere a mudar é efetivamente ao nível do modo de pensar ao ponto de o leitor ao longo da obra compreender que as principais mudanças que têm ocorrido raramente têm os portugueses como principal foco, mas sim a satisfação dos interesses privados de uma minoria.
Esta questão é tanto mais visível à medida que “Portugal, a Flor e a Foice” transita da ditadura salazarenta para a democracia periclitante e nervosa em que muitas das altas individualidades que tanto apoiaram e defenderam o opressor acabaram por vir a desempenhar um lugar cativo no pós-25 de Abril ao ponto de à boa maneira provinciana (reflexo ainda medieval) cada um tenta obter o seu “cadinho” de poder sobre terceiros, uma maioria analfabeta e ignorante e facilmente manipulada.
Passados 40 anos do fim da ditadura é lícito questionar “a quem tem servido a restauração da democracia?” quando nos dias que correm assistimos a verdadeiras nódoas políticas que mancham e ferem a liberdade e os direitos dos cidadãos que com tanto custo foram adquiridos e, em consequência disso, deparamo-nos com uma fuga incessante da população ativa para fora do país não esquecendo que atualmente, e ao contrário de outros períodos da História que o país viveu, atualmente são precisamente as pessoas mais qualificadas e mais jovens que estão a abandonar Portugal em virtude de não vislumbrarem perspetivas futuras.
Se de acordo com José Rentes de Carvalho a revolução de 1974 não foi verdadeiramente a fundo por falta de coragem e seriedade necessárias por parte de quem tinha o poder em mãos, não é de estranhar que ainda vejamos murais alusivos ao 25 de Abril com slogans do tipo “Ainda há muito Abril por cumprir”.
Passados praticamente 40 anos da sua publicação, mudaria José Rentes de Carvalho alguma coisa em “Portugal, a Flor e a Foice”?
Excertos:
"De um ponto de vista social, a emigração portuguesa constitui a manifestação de uma forma de escravidão que subsiste ainda hoje. De um ponto de vista ético, a emigração portuguesa significa a negação constante do direito mais elementar da pessoa: o direito à vida no próprio país. De um ponto de vista político, a emigração supõe a renúncia à revolta."
“Será que o destino de um povo, de um país, seja coisa que se compare a uma conta de merceeiro? Na realidade portuguesa de hoje – para nos limitarmos a ela – será válido o raciocínio de que, porque somos muitos, somos mais fortes e melhores?
Um país – e ao escrever isto não tenho a impressão de anunciar novidade ou descobrir coisa semelhante à pólvora – não pode ser propriedade de sóuns quantos mesmo muitos, uma reserva de eleitos, um negócio entre compinchas.”
“O povo, com o seu secular bom senso, ri-se das teorias, das modas políticas, das análises grotescas com que pretendem estudá-lo, moldá-lo e explicá-lo. O que vê e sente di-lo na linguagem simples do humor.”
“Um momento, durante os primeiros meses que se seguiram ao 25 de Abril, houve a esperança de que realmente alguma coisa iria mudar. O Portugal revolucionário ia ser exemplo, um passo em frente para uma Europa nova, o país cuja sociedade garantiria a cada cidadão um lugar digno. Mas quê? Em fins de 1975 as elites de agora são as mesmas de ontem, acrescentadas de uns poucos que, hábeis, subindo a tempo, ocuparam um lugar; diminuídas temporariamente da meia dúzia que, no estrangeiro, confortavelmente, aguarda dias melhores que muito certamente voltarão. Tal como na velha República de 1910, em que os ministros foram quinhentos, interessa ser ministro, garantir as benesses do amanhã.”
“Mas pela primeira vez em meio século há liberdade, e a esperança pequenina, mas real, de dividir por todos aquele muito que era de poucos.
Porém, para resguardo, e porque a liberdade e a esperança de momento são recentes e frágeis, dá
vontade de lhes pôr ao lado o letreiro que às vezes se encontra nos jardins: «É favor não pisar. Semeado de fresco».”
Texto da autoria de Jorge Navarro
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