"Numa Mesma Noite” é o mais recente romance do argentino Leopoldo Brizuela cuja obra foi aclamada com o Prémio Alfaguara Romance 2012.
Leonardo Bazán ao assistir a um assalto à casa dos vizinhos é de imediato confrontado com a recordação de um assalto idêntico à mesma casa trinta e seis anos antes, em 1977, quando tinha apenas 13 anos. O assalto dessa longínqua noite fora perpetrado por forças da autoridade da então ditadura militar vigente na Argentina.
Foi preciso um acontecimento semelhante ter acontecido para Leonardo Bazán tomar verdadeiramente consciência de que algo o houvera marcado psicologicamente durante quase toda a vida para agora, em adulto, sentisse necessidade de perceber exatamente o que aconteceu nesse fatídico dia envolvendo o seu pai e a vizinha da casa em frente, compreendendo de igual modo a sua relação com o regime político de então.
Leonardo Bazán rapidamente compreende que apenas conseguirá compreender o sucedido através da literatura que será a sua redentora neste processo de dissecação penosa da memória e do passado à medida que vai escrevendo um livro.
Mas conseguirá Leonardo Bazán redimir-se através da escrita à medida que desvenda todas as fendas desse passado que obrigou-se a si mesmo a ocultar?
Serão culpados apenas aqueles que provocaram o medo e o terror a terceiros ou também aqueles como Leonardo Bazán terão de assumir a sua quota-parte de culpa por cobardia em não ter trazido à luz em tempo útil a verdade dos factos?
Não se tratando de uma obra autobiográfica, “Numa Mesma Noite”embarca-nos numa viagem à Argentina quando esteve sob o domínio da ditadura militar entre 1976 e 1983 que mergulhou o país num período de duras perseguições e mortes de todos aqueles que de alguma forma constituíssem uma ameaça à ordem estabelecida. Ainda que todos ospersonagens desta obra sejam ficção, todas as entidades e organizações indicadas existem ou existiram.
“Numa Mesma Noite” de Leopoldo Brizuela articula de modo notável a história de um indivíduo e até de uma família com a história de um país fazendo uma dura viagem não só no tempo, mas sobretudo uma dolorosa viagem pela consciência.
Excertos:
"Talvez só a literatura fosse capaz de me perdoar. A literatura, esse futuroleitor. (...)Compreendo que a escrita é um modo único de iluminar a conexão entre o passado e o presente. E isso encoraja-me a começar: não como quem informa, mas antes como quem descobre." (pp. 41, 46)
"Porque me será tão difícil recordar aquela época? Apenas porque nela tinham acontecido coisas monstruosas? Ou porque fora testemunha de que qualquer pessoa é capaz de se transformar num monstro, e isso é intolerável?"
(pp.138-139)
“No autocarro que me trouxe de volta, uma imagem insistia em atormentar-me: tal como eu me dirigia irrevogavelmente a Tolosa, a morte também vinha, irrevogavelmente, em direcção a mim. Irrevogavelmente.
Ou era apenas o meu silêncio? Essa forma de morte que implica não conseguir escrever. Suspeitar uma vez mais de que nunca tinha escrito nada. Que nunca haveria de conseguir escrever nada.
Que a antiga ilusão de escrever sobre o horror, de o mencionar, para poder livrar-me dele, era irrealizável; apenas a ilusão que me permitia continuar a escrever e um dia, quando muito, conseguir encarar, frente a frente, a sua escuridão.
Todos estávamos encurralados numa trama de horror; e, provavelmente, todos éramos necessários para que essa trama subsistisse. Mas quem, de entre nós, deveria ser condenado?
(…)
Eram igualmente culpados, e merecedores de igual castigo, aquele que matou e torturou e aquele que não se atreveu a enfrentar o terror? E, ainda hoje, quem apontava o dedo e se julgava no direito de aplicar o castigo,poderia considerar-se verdadeiramente inocente? Ou só acusamos para não sermos obrigados a ver que o mal que reside no outro também espreita em nós? Oh, só o dom da piedade seria capaz de nos salvar.
Piedade, pedi. Piedade.
Mas já era tarde de mais para isso.”
(pp. 265-266)
Texto da autoria de Jorge Navarro
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