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domingo, 17 de novembro de 2013

Ao Domingo com... Tiago R. Santos

‘Escreve sobre o que sabes’, dizem os sábios, o que talvez explique a razão pela qual tenho tanta dificuldade em escrever sobre mim próprio. Ao trabalhar em ‘A Velocidade dos Objectos Metálicos’, fui confrontado com uma certeza que tentei ignorar durante décadas: as minhas memórias estão, regra geral, bastante afastadas da realidade dos factos. ‘Lembro-me de ser atropelado em frente à casa dos tios”, afirmei uma vez perante os meus pais. Nada de grave, apenas o choque do metal contra a carne e os ossos, um minuto de inconsciência e a busca por um sapato que saltou do pé. Ainda agora, que coloco o evento em palavras, consigo visualizar a cena e os seus detalhes, como se estivesse atrás de uma câmara que me observa. Nunca aconteceu, claro, não passa de produto da minha imaginação, mas não deixa de ser menos real por causa disso. A verdade é sobrevalorizada e a sua interpretação, transformação e adaptação às necessidades literárias , esse fascinante processo, é a razão pela qual me tornei escritor décadas antes de escrever a minha
primeira linha. Porque sempre fui um ladrão atento aos momentos de outros, um carteirista de diálogos alheios, intruso na vida de desconhecidos e sem qualquer problema em transformar pessoas e situações em ficção. O que faz de mim também um mentiroso. “Entre a verdade e a lenda, publica a lenda”, diz o editor em “O Homem que Matou Liberty Valance”, o incrível filme de John Ford. E eu também escrevo para tornar a minha realidade mais interessante, apagando-lhe os aspectos banais, oferecendo-lhe um propósito e uma lógica que me escapa, criando uma dimensão que é épica e pessoal em simultâneo num processo esquizofrénico onde nada escapa e tudo se transforma. Acredito que a mentira da ficção é fundamental para tentar encontrar a verdade do mundo e talvez seja por isso que o trabalho do escritor é solitário, porque quando roubamos e mentimos não queremos testemunhas, o que procuramos são cúmplices e estes são os leitores que abrem as páginas dos livros e, durante instantes, se colocam do nosso lado e acreditam na versão encadernada da realidade. Cheguei ao fim do texto e percebi que não revelei nada sobre mim próprio. Talvez seja pelo melhor. Não haveria, de qualquer forma, razão nenhuma para acreditarem em mim.

Tiago R. Santos

5 comentários:

  1. O Tiago é a segunda vez que me surpreende pela positiva e ...muto francamente quando li o descritivo das suas memórias hipotéticas sobre um cenário de atropelamento deparo comigo a rebobinar um famigerado caso que ocorreu realmente comigo há cinquenta e tês anos quando , saindo de casa traquina e apressadamente para ir buscar uma bola que havia caído da minha varanda só dei por mim no hospital passado algum tempo já que a bola não foi apanhada mas sim eu, pequena criança, quando colhida por uma motorizada e de cujo acidente nada mais resultou do que um simples esfolar de joelhos dado que , independentemente do sobressalto e susto evidentes ... e como recompens consegui mais um chocolate que tanto apreciava. Voltando um pouco à sua escrita vejo por aqui a passear muito talento que alíás, felizmente já muito evidenciado, vai sendo apreciado não só pelos criticos de escrita e cinema como António Pedro Vasconcelos mas sobretudo pelos seus leitores mais atentos à qualidade de uma boa prosa. Por favor não pare., Agostinho Lopes

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    1. Ainda nao li nada do Tiago... Ainda! Porque conto fazê-lo! Este pequeno texto abriu-me o apetite!

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    2. Cris ...se me permite não hesite um instante porque a obra em si é deveras e metalicamente falando...avassaladora e como diria Maelo Rebelo de Sousa ...imperdível.

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  2. Agradeço imenso o incentivo e a simpatia, Agostinho. Grande abraço

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    1. Não tem mesmo necessidade alguma de agradecimento pois o cineasta e realizador Vasconcelos foi taxativo ao apontar quer o seu nome quer o do JoãoTordo e de Hugo Gonçalves como promissores esritores da actualidade. Abraço também para si Tiago

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