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domingo, 14 de outubro de 2012

Ao Domingo com... Tânia Ganho



"Tudo ressoa numa prisão. Os meus saltos incongruentes nos mosaicos brancos, o meu pigarrear nervoso, a minha mão distraída que mexe nas chaves dentro do bolso. O telemóvel ficou na portaria, o bilhete de identidade também. Transpus o detector de metais e, de repente, o mundo ficou lá fora, mas a minha missão era levar o mundo lá para dentro, eu era uma porta que se entreabria para as pessoas que tiveram a generosidade e a paciência de me ouvir naquele dia. Enquanto percorria os estéreis corredores brancos, cruzando-me com guardas a cada esquina, dei por mim a lembrar-me das palavras de um amigo: Porque é que as tuas personagens estão sempre num sufoco, em fuga, à procura de evasão? De repente, tomei consciência de que um dos temas que perpassa todos os meus livros é a liberdade, o desejo de escapar para lá dos muros que a sociedade – e nós próprios – construímos à nossa volta. A escrita permite-me, desde os doze anos, ir além de mim mesma e das minhas limitações e criar um espaço onde nada me é proibido.
Vivi numa cidade do interior até aos 21 anos, com uma sensação de asfixia. Cada regresso depois das férias na praia era uma espécie de condenação à clausura. Faltava-me o mar, esse horizonte amniótico pejado de possibilidades. Assim que pude, fugi e, até hoje, Lisboa, a cidade branca que desagua no Atlântico, é para mim sinónimo de oxigénio e espaço. Foi daqui que parti para conhecer o resto do mundo, é aqui que regresso no final de cada ciclo de viagens, encerrando cada década.
Não sei falar sentada. É de pé, andando de um lado para o outro, gesticulando como se quisesse abarcar o mundo com os braços, que apresento os meus quatro livros a uma vintena de homens cuja vida se confina às paredes da prisão de Caxias. É, no mínimo, presunçoso pensar que consigo imaginar como é a vida deles, e constrangedor dizer-lhes que as minhas personagens vivem em prisões que elas próprias construíram. Mas conto-lhes a história da Ana de A Vida sem Ti, que se mudou para Londres atrás de um sonho e esbarrou numa parede cheia de portas fechadas; da Clara de Cuba Libre, que fugiu da ilha da Madeira e se apaixonou por uma mulher que vivia em Cuba, essa ilha-prisão onde até o carteiro anda fardado (Guillermo Cabrera Infante); da Paula de A Lucidez do Amor, que teve de se reinventar numa aldeia nos confins do mundo, enquanto o marido partia para o Afeganistão com licença para matar; da Mara de A Mulher-Casa, que viu Paris como uma prisão dourada e descobriu que, onde quer que se encontrasse, estaria sempre dentro da mesma campânula de vidro, a respirar o seu próprio ar fétido (Sylvia Plath).
Nunca me fizeram tantas perguntas no fim de uma sessão. À primeira vista, as minhas mulheres não teriam afinidades com aqueles homens, mas eles interrogam-me, provocam-me, comovem-me. Esqueço-me das grades e dos guardas e entrego-me à discussão, ao debate, falamos de literatura, falamos da vida.
Quando recupero o BI e o telemóvel, quando franqueio a porta da rua e meto primeira no meu carro, rumo ao horizonte líquido de Lisboa, faço-o com a noção intensa de que ler é uma das formas mais acessíveis de evasão e escrever é assumidamente um acto de partilha. Foram os meus livros que me permitiram entrar por instantes na vida dos reclusos de Caxias, dos adolescentes de Bustos, dos idosos de Santa Comba Dão. É a escrita que todos os dias me abre portas junto de uma parede sem portas, a mim, que nunca me sonhei génio como Álvaro de Campos, apenas uma contadora de histórias.
A próxima é sobre um homem, uma ilha, o mar.

Tânia Ganho

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