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terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

A Convidada Escolhe: "O Que o Dia Deve à Noite"

É um romance pungente. Passa-se na Argélia colonizada, num ambiente habitado por pessoas tristes, oprimidas e desamparadas, em que a vida de Younes/Jonas e da sua família é marcada pelo peso da fatalidade e de um destino inelutável e de sujeição aos desígnios de um deus. A partida da aldeia para a cidade de Orão é o primeiro confronto com um mundo totalmente desconhecido, não só pelas construções modernas e requintadas dos bairros ricos, habitados por uma elite essencialmente europeia, mas também pelos padrões de vida em que as mulheres não usavam véu, ao invés daquilo a que estava habituado na sua aldeia recôndita, onde as mulheres se deviam afastar e esconder-se quando algum homem se aproximava de casa. Mas também a cidade rica tem o seu reverso: os bairros miseráveis que iam crescendo com os que fugiam da pobreza em busca de uma ilusória vida melhor. Foi para aí que a família de Younes foi viver na busca da dignidade, mas mais uma vez, é a "selva" e a lei do mais forte que se impõem ao quotidiano do jovem muçulmano. Só a solidariedade natural entre as mulheres que habitam aquele bairro miserável consegue gerar alguma humanidade no quotidiano deprimente e hostil em que se movem.

A separação dos pais é a resposta que o pai de Younes encontra para dar algum futuro ao filho. A mudança para casa de um tio farmacêutico, ligado a círculos da intelectualidade política nacionalista é um choque, pois é um corte afectivo doloroso, apesar do amor que os tios lhe dispensam, tratando-o como um filho. Já aquando da saída da aldeia, Younes tinha sido obrigado a deixar para trás o seu cão, seu único amigo e confidente e agora era dos pais e da irmã que se via privado.
Com uma personalidade solitária e introvertida, incapaz de assumir uma postura de luta pela sobrevivência no mundo hostil dos miúdos agressivos e brutamontes do bairro miserável, Younes/Jonas vive o sofrimento e o mal-estar de alguém que não está bem com a sua condição, que se sente perdido e desenraizado. A guerra rebenta na Europa; na Argélia a resistência ao colonialismo começa a dar sinais de vida, a repressão dos manifestantes pela independência é feroz e milhares de muçulmanos são massacrados. O racismo contra os árabes está latente e Younes é confrontado com essa realidade. Há uma ambivalência e uma indefinição nele próprio, até na forma como é visto pelos outros e por ele mesmo: Younes o muçulmano, ou Jonas o europeu? É claro que numa sociedade em grande tensão e conflito, um dia Younes/Jonas terá de escolher um lado.

O seu estatuto social como filho adoptivo do farmacêutico põe-no em contacto com outros jovens que irão marcar o seu destino. É um período feliz e despreocupado marcado pelos verões na praia, os bailes, os encontros e desencontros amorosos, os ciúmes, sendo que ele e os três amigos eram "inseparáveis como os dentes dum garfo, vivíamos para nós próprios e o mundo éramos nós os quatro." Émilie torna-se o objecto da paixão dos jovens adolescentes, o centro do conflito de sentimentos que, em última análise, irá marcar as vidas de Younes e de Émilie e será um aspecto central neste romance. O amor procurado, o amor desejado, o amor reprimido, o amor não revelado, o amor não correspondido, o amor como uma urgência de vida e que, quando se renuncia ao amor, passa-se ao lado da vida e não se vive plenamente. É essa uma das grandes lições deste romance, em tudo marcado por uma tristeza, uma incapacidade de agarrar a felicidade, por preconceito, por incapacidade de se libertar de dogmas. Como o próprio Younes reconhece em determinada altura "Nada está escrito. Na maior parte dos casos, continuamos a ser os principais artífices das nossas infelicidades. Os nossos erros somos nós que os fabricamos com as nossas mãos. Quanto ao que chamamos de fatalidade, trata-se apenas da nossa obstinação em não assumir as consequências das nossas pequenas e grandes fraquezas".

O final do romance, passados quarenta anos sobre o fim da guerra de libertação da Argélia que levou ao êxodo massivo de muitos cidadãos argelinos para França, é o reencontro de Younes com os amigos de infância e o fechar de alguns assuntos em aberto. É a reconciliação com alguém há muito desavindo, é o sarar de feridas abertas, é o olhar para a vida de frente como algo que há que festejar e não remoer um passado que não volta mais. Se o tom geral do romance é triste, o autor quis, no entanto, dar ao/à leitor/a uma perspectiva positiva, valorizando a vida e o amor como questões preciosas de que não podemos abrir mão nem deixar escapar.

Almerinda Bento

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