David Rousset (1912-1997) é um dos mais prestigiados filósofos franceses do século XX. A sua experiência nos campos de concentração de Buchenwald e Neuengamme, entre 1943 e 1945, serviram de base à publicação de "O Universo Concentracionário", em 1945, poucos meses após o final da 2ª Guerra Mundial.
Parco em palavras e com frases de um modo geral curtas, David Rousset assenta a sua tese nas questões essenciais de ordem técnica do Nacional-Socialismo que desde a ascensão de Hitler ao poder houve a necessidade de "mistificar" a realidade social, económica e política apresentando os "responsáveis" a perseguir, a saber "o comunista, o judeu e o democrata (p. 73) relegando-os para campos de trabalho forçado cuja finalidade era a morte, adiada por três a quatro meses. Fortemente assente na propaganda, o Nacional-Socialismo compreendeu desde cedo que só por esta via toda a sociedade seria mobilizada, passando por uma lavagem ao cérebro intensa, desenvolvendo em paralelo uma verdadeira indústria da morte.
Muitas vezes mal interpretado pelas suas ideias, David Rousset opta por refletir sobre "o osso em detrimento da carne" na medida em que compreendendo a fonte compreendemos de forma (quase) dedutiva toda a máquina que vitimou milhões de pessoas. As histórias particulares raras ou poucas vezes têm um nome associado ao longo do ensaio e quando assim acontece é somente com o objetivo de encorpar uma dada ideia, de exemplificar em concreto um pensamento. Neste ensaio o judeu não é destacado em detrimento do comunista ou do social-democrata, igualmente perseguidos, detidos e aniquilados. Os perseguidos encontram-se todos em pé de igualdade e ao serviço da grande máquina de guerra.
"O Universo Concentracionário" é um pequeno ensaio dado as poucas mais de cem páginas que o constituem, no entanto, dada a complexidade que apresenta e a dureza de algumas ideias que caem como pedradas no charco capazes de esmagar o leitor. Apresenta-se também como uma obra de referência para os estudiosos sobre os campos de concentração durante a 2ª Guerra Mundial tendo sido um dos contributos mais importantes na obra "As Origens do Totalitarismo" de Hannah Arendt.
A par de "Se Isto é um Homem" de Primo Levi, "O Universo Concentracionário" de David Rousset constituem duas faces da mesma moeda, na medida em que no caso específico de Primo Levi apresenta a sua experiência pessoal com inúmeras descrições desde a sua prisão, deportação para Auschwitz e libertação. Paralelamente às suas experiências pessoais, Primo Levi, engenheiro químico, apresentou ao mundo não só uma importante obra de cariz histórico, mas é também do ponto de vista literário uma das obras de referência da segunda metade do século XX constituindo um importante registo com a missão de manter a História viva e que a Humanidade não volte a conhecer tamanhas atrocidades que envergonham e magoam o ser humano na sua essência, naquilo que de mais belo tem.
O leitor não vai encontrar em "O Universo Concentracionário" a descrição de experiências do género das de Primo Levi, não que o autor seja uma pessoa desprovida de emoções e sentimentos, mas o objetivo é explicar e compreender a máquina, o universo concentracionário, a base que levou ao extermínio em massa. David Rousset aborda a questão da burocracia excessiva, as hierarquias, os mecanismos de tortura, a corrupção entre aqueles que de alguma forma exercem o poder sobre um determinado número de reclusos sendo eles próprios também reclusos nalgumas situações, e ainda a máquina psicológica tão bem oleada capaz de transformar o recluso num verdadeiro "cadáver vivo" até ao seu extermínio inevitável.
"Os campos, pela sua existência, instalam na sociedade um pesadelo destrutivo, eternamente presente, à mão de semear. A morte apaga-se. A tortura triunfa, sempre viva e activa, pairando como um arco sobre o mundo aterrado dos homens. Não se trata somente de reduzir ou paralisar uma oposição. A arma é singularmente de uma eficiência muito maior. Os campos castram os cérebros libres.
Os campos: sombrias e altaneiras cidades solitárias da expiação; o que justifica o «desporto» nos campos em estado puro, a tortura nua como uma espada nova sempre desembainhada. O trabalho é entendido como meio de castigo. Os concentracionários-mão-de-obra são de interesse secundário, preocupação alheia à natureza íntima do universo concentracionário. Psicologicamente, cimenta-se através do sadismo de obrigar os detidos a consolidarem os instrumentos do seu aniquilamento." (pp. 70-71)
Há passagens em "O Universo Concentracionário" em que o leitor é obrigado a parar e reler novamente face a algumas ideias que à primeira vista possam ser interpretadas como inacreditáveis, chocantes até. Pessoalmente, foi a primeira vez que li uma obra sobre campos de concentração que apresenta as questões nestes termos, chegando a ironizar e até a fazer algum humor como forma de sobrevivência (que poderia ser interpretado como desdém ou simplesmente como piada de mau gosto) e, a meu ver, parece-me que é esse um dos pontos em que reside a originalidade do pensamento de David Rousset. Por essa razão, esta obra constitui um importante documento do ponto de vista histórico e também filosófico e que, à semelhança das obras de Primo Levi, remetem para a necessidade da manutenção da memória histórica.
Face ao exposto e concretizando com as palavras do próprio David Rousset, o que pensar sobre os campos de concentração e nos milhões de vítimas da máquina de morte nazi, a saber:
"Ainda é muito cedo para fazer o balanço positivo da experiência concentracionária, mas ele revela-se desde já rico. Tomada de consciência dinâmica do poder e da beleza do facto de viver, em si, brutal, desprovido completamente de todas as superestruturas, de viver mesmo no meio das piores derrocadas ou dos mais graves retrocessos. Uma frescura sensual da alegria edificada sobre a mais completa ciência dos escombros e, por consequência, um endurecimento na acção, uma obstinação nas decisões, em resumo, uma saúde mais vasta e intensamente criadora." (p. 111)
David Rousset teve um papel fundamental não só no que respeita ao tema que alude em "O Universo Concentracionário" remetido para o capítulo negro que a Humanidade conheceu durante a 2ª Guerra Mundial, mas também exerceu uma voz determinante na denúncia dos crimes cometidos pelo regime totalitário comunista na União Soviética nos anos que se seguiram à guerra sendo uma realidade desde os anos 20 que arrastou milhões de cidadãos para a realidade dura e desumana dos gulags que em tantos aspetos se assemelham aos campos de concentração nazis.
David Rousset deixa ainda, em jeito de conclusão, um alerta para a sociedade alemã (e também para a humanidade) sobre o perigo das estruturas herdadas do Nacional-Socialismo na nova estrutura socioeconómica e política em construção no pós-guerra. As suas considerações têm um impacto de tal forma clarividente que atravessa décadas, cujo alerta (ou aviso) assenta como uma luva nas sucessivas encruzilhadas face às sucessivas manipulações a que o mundo está sujeito em detrimento dos poderes em confronto existentes na tentativa de dividir para reinar.
"A existência dos campos é um aviso. A sociedade alemã, quer devido à sua estrutura económica quer à dureza da crise que a arruinou, conheceu uma decomposição ainda excepcional na actual conjuntura do mundo. Mas seria fácil mostrar que os traços mais característicos, não só da mentalidade S.S. como também dos alicerces sociais, se encontram em muitos outros sectores da sociedade mundial. Menos pronunciados, porém, e certamente sem medida comum com os desenvolvimentos conhecidos no Grande Reich. Trata-se apenas de uma questão de circunstâncias. Seria um logro, e criminoso, pretender que é impossível aos outros povos fazerem uma experiência semelhante por terem uma natureza diferente. A Alemanha interpretou com a originalidade inerente à sua história a crise que a levou ao universo concentracionário. Mas a existência e o mecanismo desta crise ligam-se aos fundamentos económicos e sociais do capitalismo e do imperialismo. Sob um novo figurino, ainda podem aparecer amanhã efeitos semelhantes. Trata-se, por conseguinte, de travar uma batalha muito precisa. O balanço concentracionário é, quanto a isto, um maravilhoso arsenal de guerra. Os antifascistas alemães internados há mais de dez anos devem ser preciosos companheiros de luta." (pp. 111-112)
Texto da autoria de Jorge Navarro
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