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domingo, 6 de novembro de 2011

Ao Domingo com... Fátima Marinho

"Foi aos oito anos que desisti de escrever o meu primeiro romance. Não por falta de argumento, que já esses escassos tempos me tinham dado razões sobejas para encher quinhentas páginas de comovidos dias.
Como sabem, os romances fazem-se mais de comoção do que de palavras. As palavras não me faltavam, como agora, por vezes, escapam da evocação imediata. As palavras surgiam tão estonteantes que as procurava no dicionário, para ter a certeza de que não provinham, simplesmente, da minha desabrida imaginação. No meio das conversas, e até dos pensamentos, irrompiam sonoridades, às vezes bizarras como, por exemplo, “incompletude”. Corava, se acompanhada e, logo que possível, folheava o velho e sábio dicionário. A falta que me fazia um motor de busca onde fosse possível, muito rapidamente, encontrar respostas para todas a dúvidas. Sim, naquele tempo, e durante muito tempo, para além das sebentas, dos manuais escolares, da infindável colecção “A Formiguinha”, das cadernetas da Heidi, e dos livros requisitados na biblioteca itinerante da Gulbenkian, que costumava parar na Praça da República, não havia muito mais onde buscar matéria para entreter o ávido cérebro de uma criança provinciana. Daí que me tenha especializado na audição das conversas dos adultos - que invariável e displicentemente, depois de notarem a minha presença, alinhavam pelo diapasão de que, sendo ingénua, não percebia o que diziam - e tenha, por causa disso, acumulado muita matéria para amparar a escrita da qual desisti, já disse, por volta dos oito anos. Não sabia como começar. Falaram-me as primeiras frases.
Da romancista desistente, despontou uma atrevida poetisa. Era assim que se chamava, naquele tempo, uma poeta. A pele colada aos ossos valeu-me o epíteto de “poetísica”, a que mais tarde se somou o de “bruxinha”, por causa da inevitabilidade com que incessantemente antecipo o futuro, sobretudo o dos filhos indesejados.
- Vais ser pai/mãe?
- Deus me livre, vira essa boca para lá.
Tarde de mais, nove a dez meses depois da questão, nascia a criança - a interromper os planos da juventude ou a desafiar as certezas da ciência acerca da infertilidade. De tal forma que tenho mais fama do que a ponte da Mizarela, no que respeita a dar filhos a supostos pais/mães inférteis.
Aliei a adivinhação a antecipados conhecimentos sobre mediação de conflitos, para passar a ser aquela rapariga a quem as amigas, e as amigas das amigas, apelavam para, através de cinco ou seis parágrafos, interceder junto dos pais, com quem se haviam arreliado, ou do ex-namorado a reconquistar. Não precisava que me dessem pormenores sobre os assuntos. Com duas ou três pinceladas da briga, desenhava, com as palavras, sentimentos de contrição e saudade pela paz perdida que, quase sempre, atingiam os corações, aparentemente, fechados dos entes queridos.  
Assim se fez, precocemente, uma conselheira matrimonial sem vocação para o matrimónio.
O facto de saber de cor excertos de prosa clássica e infinitos poemas, ajudava ao ofício de escrevinhadora, mas atrapalhava a alegada veia poética. Tinha, amiudadamente, temor de que alguns dos versos, com que fazia os poemas, já existissem. Essa razão, aliada ao facto de lhes não encontrar especial mestria, contribuiu para que os escrevesse em folhas soltas que, depois de ler e mostrar aos que estavam por perto, deitava ao lixo. Salvaram-se uns quantos na minha, então, memória de elefante. Outros foram resgatados por mãos caridosas que, agora, os enviam, através da nona maravilha do mundo, a comunicação digital no ciberespaço.
Lembro-me de ser suficientemente jovem para escrever:

Olhai a borboleta negra que volteja
Na minha alma branca de menina,
A querer tingir de negro os meus pecados.
Vai-te embora borboleta, não me tentes,
Não me queiras pesar na alma leve,
Pois bem podes dançar todos os ritos,
Lançar os uivos dos teus ais aflitos,
Que a minha alma sempre será
Branca de neve.

Nesta minha “a”ventura, tiveram singular importância as irmãs Glorinha e Maria José Meireles que, no tempo em que com elas partilhei um colégio de freiras, estremeciam cada vez que me viam colocar os poemas no caixote do lixo da sala de estudo, depois de, à socapa da vigilância da Irmã Irene, lhos dar a ler. A Glorinha, cuja carteira ficava atrás da minha e era a mais imediata leitora, deu-se à estopada de transcrever os que conseguia guardar; a Maria José ofereceu-me, em vão, um caderno, para que não submetesse a produção lírica ao anonimato.  
Os anos passaram tão vertiginosamente que, quase trinta anos depois, a Maria José continua a reclamar o seu caderno. Tenho para lhe oferecer cem poemas e um conto, a publicar proximamente, porque os editores da Alphabetum são mais teimosos do que eu, e insistem em publicar o que, à força, resgatam à censura das minhas mãos de tesoura.
O meu deleite pela escrita fundeia-se, contudo, no encantamento pela leitura. Mas, apropriando o que, sobre o acto de ler, disse Goethe, insisto que; as pessoas não sabem o que custa, em tempo e esforços, aprender a ler.
Eu necessitei, para isso, de quarenta e quatro anos e não estou certa de o ter conseguido plenamente.
Precisando Goethe de oitenta anos, e eu de quarenta e quatro, para aprender a ler – sublinho que, como ele, não estou convicta de ser proficiente na tarefa -, quantos anos serão necessários para aprender a arte da escrita, essa faina que permite que os outros se descubram em nós?"

Fátima Marinho 
2011-11-02

3 comentários:

  1. Concordo com você, o trabalho de leitura forja o escritor...não há idade para isso! Cora Coralina,, poeta de primeira ordem, começou a escrever tardiamente, e é o que é...

    E vamos nós, seguindo esses exemplos.

    Abraço,

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  2. Fátima e Cris, obrigada a ambas por me proporcionarem os preciosos minutos de
    prazer que senti ao ler este texto.
    Maravilhoso...

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