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domingo, 23 de maio de 2021

Ao Domingo com... Marta Martins Silva


Desde que me lembro de mim, escrevo. Talvez tenha começado a escrever para me organizar melhor embora sem consciência de que o fazia – ao escrever exorcizava angústias, hierarquizava desejos, registava alegrias ou desalentos. O papel foi sempre uma espécie de confidente que nada pedia em troca pelo ombro amigo e talvez a minha forma de lhe agradecer tenha sido enchê-lo de palavras e nunca o deixar vazio. Não sei quando percebi que queria fazer da escrita a minha profissão porque na verdade nunca quis outra coisa que não fosse escrever. À medida que fui crescendo fui-me descentrando de mim para escrever sobre os outros e percebendo que nada me dava mais prazer do que contar histórias reais mesmo que parecessem ficção. Porque pô-las no papel é partilhá-las com o mundo – e o mundo anda tantas vezes de olhos fechados para as histórias, que precisa de as ler em notícia de jornal. Durante algum tempo, ainda na adolescência, sonhei ser repórter de guerra – mas cedo percebi que as histórias que eu queria contar não estavam à distância de uma viagem de avião. Estavam do outro lado do passeio, nos olhos daquela mãe cansada que carrega os filhos pela mão e que a meio do mês já não sabe o que lhes pôr na mesa para comer porque a renda subiu e o patrão não aumentou. Estavam no corpo
velho que se achou sem dono nem passado numa rua que podia ser a nossa, num prédio que podia ser o nosso, dez anos depois da vida se esvair sem ninguém dar conta, nem sequer o vizinho do lado a quem de quando a quando pedia um raminho de salsa. Estavam nos que se entregam a causas e se dedicam aos outros mais do que alguma vez o farão com eles próprios. E estavam - comecei a descobrir graças ao meu trabalho como jornalista da revista Domingo do Correio da Manhã - nas memórias dos ex-combatentes da Guerra Colonial, baús trancados a sete chaves com muita necessidade de alguém que lhes encontrasse a chave e se dispusesse a mergulhar neste(s) passado(s). As memórias destes homens às vezes surgem durante conversas bem-dispostas e outras vezes vertem lágrimas que ficaram muito tempo (demasiado tempo) por chorar. O país esteve em guerra durante 13 anos e não foi por vontade destes homens – que no início dos seus vinte anos aprenderam a disparar armas que nunca tinham visto num país distante do que eles conheciam, tendo o medo por companhia diária. Muitos destes homens viram morrer amigos ao seu lado. Viram ferido o rapaz com quem na noite anterior beberam cerveja e falaram sobre a pátria. Pisavam a medo o chão minado. E tentavam esquecer as agruras de uma guerra que rapidamente perceberam sem sentido nas cartas que trocavam com as suas madrinhas de guerra, jovens raparigas que levaram a sério a missão de entreter os soldados e por momentos – nem que fosse durante os minutos em que engoliam as suas palavras depois da avioneta poisar em terras do fim do mundo – fazê-los esquecer de que podiam nunca regressar. Foi sobre eles e sobre elas, afilhados e madrinhas, que escrevi o meu primeiro livro, editado pela Desassossego em outubro de 2020 e que se chama precisamente ‘Madrinhas de Guerra’. Nele estão muitas cartas trocadas entre estes homens e estas mulheres e nelas estão dores e medos, mas também, e sobretudo, promessas e futuro. Através das cartas é possível espreitar também o Portugal que fomos nos anos sessenta e setenta do século passado e perceber que mesmo no meio da guerra, no meio das sombras e dos escombros, há lugar para o amor. 

Marta Martins Silva

20-5-2021

2 comentários:

  1. Decerto que seja um livro com uma Estória fascinante de ler. Não conheço o trabalho desta escritora.
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    Domingo feliz … cumprimentos
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    Pensamentos e Devaneios Poéticos
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  2. Muito bem. Um belo texto! :)
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    Fraquezas no sentido lato
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    Beijo e um excelente fim de semana

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