Corredores de Saudades
Sabe, Doutor, o que me custa.
Poderá imaginar o que me custa.
Ouvi-lo dizer que está tudo bem, que o medicamento pegou como se fosse um enxerto, quando o meu marido se perdeu num sítio escuro onde não deixa ninguém entrar, porque a determinada altura somos todos estranhos a bater-lhe à porta. Para si é simples pronunciar o alívio, imaginar que o sente como nós, gente de quem daqui a uns tempos mal se lembrará. Quando muito, um registo sucinto no caderninho que traz na pasta; um cumprimento inseguro, se nos cruzarmos na caixa do supermercado e tiver a sensação de que nos conhece de algum lado; a publicação de um caso clínico numa revista da especialidade. Mas as pessoas têm nome, são pais, filhos, irmãos, amigos, conhecidos de alguém; têm gostos e interesses que as definem; sonhos que as motivam; vidas que as preenchem e as tornam invulgares, e isso não quer dizer boas nem más, apenas diferentes umas das outras. Os números dos milhares de cirurgias que vêm nos folhetos publicitários têm nomes por detrás. Talvez os confunda de vez em quando, são tantos que é impossível sabê‑los de cor, convenhamos, sobretudo agora, que os anos vão passando por si e a memória lhe prega rasteiras. Mas compreendo, há que manter o discurso impessoal, defender-se dos avanços da intimidade.
O Doutor, que é um reparador de memórias, deve achar que é fácil esquecer tudo o que sei sobre a doença, a modéstia de resultados, a prudência nas expectativas. E até gostaria de seguir os seus conselhos sábios – na sua armadura branca deve ser fácil dá-los – mas a memória não condescende, não se deixa arrumar como queremos.
Se pudesse, juntava-me aos outros que seguem uma normalidade displicente, com as suas vidas cheias de falhas vulgares e invisíveis. Suturava este buraco que se abriu em mim, não sei se o vê desse lado, a olho nu, por detrás das suas lentes quase impercetíveis.
Aposto que escolheu neurocirurgia por ser uma área fascinante de que se sabe tão pouco, e o Doutor tem ar de quem aprecia os desafios do conhecimento. Décadas de estudo, de investigação, de prática. O calendário abarrotado de intervenções, implantes de elétrodos para reparar circuitos, tratar perturbações e doenças perversas que esvaziam as pessoas. Milhares de vezes em que entrou e saiu do bloco operatório, procurou os familiares ao fundo do corredor ou nas salas onde fingimos que nos distraímos com a televisão, antecipou as palavras certas sem pigarrear, porque ao fim de tantos anos é natural que as saiba de cor. As pessoas dão tudo por uma nesga de esperança, mas estas coisas mudam de um dia para o outro.
De um dia para o outro somos outros.
E talvez por isso se reserve. Em cima da mesa que nos separa há pouco de si. Uma moldura que resguarda da curiosidade alheia, junto ao computador, a única extravagância emocional a que se permite no trabalho. Um caderno no qual pousa uma esferográfica das mais baratas, a ponta da tampa partida de tanto cair ao chão ou, não sei, vamos supor, das vezes que atirou com ela à parede, nos picos de stresse, e daí os riscos na pintura. Um monte de processos reservados no canto, à espera de que a assistente os venha recolher. Mas não se trata apenas de um móvel, antes a distância de conveniência que se impõe, milhares de vezes em que se calhar a desejou transpor, deixar de lado o atendimento protocolar, despir-se da frieza que o forra da dureza da vida e dos ajustes da profissão, e olhar os seus pacientes nos olhos sem qualquer embaraço, porque vistas de perto as pessoas são únicas.
O Doutor, que é seguramente um especialista nestas coisas da mente, poderá compreender o que é temer pela vida de alguém que é parte de nós, uma espécie de órgão, se quiser transpor para linguagem médica. Viver com o pânico entranhado ao ponto de nos destruir. A dor cortante (calcule o golpe sem anestesia) que é começar por imaginar a perda, traçar‑lhe os contornos até que se afigure uma possibilidade e logo depois uma certeza aterradora. Percorrer corredores de saudades que não desembocam em sítio algum, não trazem nada de volta, e saber que nenhuma porta jamais se abre quando chegamos ao fim. Ficar sem alguém de quem nos apropriamos indevidamente, que olhamos de perto, todos os dias, na sua singularidade insubstituível, sem coragem de lhe dizermos que a sua falta será avassaladora.
Se souber, Doutor, e é natural que me possa ensinar
como se tratam as doenças que nos matam
antes de chegar a morte.
Susana Piedade
fevereiro 2021
Parabéns pela publicação fantástica! Adorei :))
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"A vida é uma passagem..."
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Um excelente Domingo... em casa
Beijos
Muito obrigada pelo convite e pela publicação, Cris! E continuação de sucesso para este tempo entre os livros...
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