“A Lotaria e Outras Histórias”
Shirley Jackson
(Cavalo de Ferro)
“-
Doutor – disse -, como é que as pessoas percebem se estão a ficar
loucas?”
(p. 139)
Herdeira
da tradição do gótico americano, Shirley Jackson (1916-1965) é um
dos nomes incontornáveis da literatura do século XX cujas obras têm
sido adaptadas ao grande ecrã, como o caso de “A Maldição de
Hill House” (várias adaptações) e “Sempre Vivemos no Castelo”
cujo filme estreou em Maio.
Mestre
do suspense e do terror, Shirley Jackson tem a capacidade de agarrar
por completo o leitor e arrastá-lo para o centro das narrativas como
se tratasse de alguém a assistir de perto. Ninguém fica indiferente
ao universo de Shirley Jackson, muito próximo do de Flannery
O’Connor (1925-1964) e igualmente importante no contexto da
literatura do século XX e ambas as escritoras também com uma obra
relativamente curta, e que se notabilizaram como romancistas e
contistas.
Mas
creio que Shirley Jackson terá ido mais longe no modo como escreve
sobre a natureza humana e, em especial, a maldade, tanto de forma
evidente, como através da subtileza das suas palavras, do género de
lobo com pele de cordeiro.
Shirley
Jackson não tem qualquer pudor no modo como utiliza as palavras para
matar alguém, seja com veneno, seja à pedrada, por vingança ou
simplesmente por maldade pura, cumprindo rituais e tradições
ancestrais. Este lado negro do homem é transversal à obra da
escritora.
A
originalidade das histórias a par do seu talento para escrever
colocou Shirley Jackson entre os escritores de maior importância do
século passado e quem lê as suas obras dificilmente as esquecerá,
quer se trate do terror presente em “A Maldição de Hill House”
ou o perturbador “Sempre Vivemos no Castelo” cujo ambiente
fechado e preconceituoso esmaga qualquer um.
Mas
o percurso literário de Shirley Jackson ficou marcado com a
publicação do conto “A Lotaria” no “The New Yorker”, em
1949, tendo suscitado de imediato grande controversa ao ponto de
muitos leitores terem cancelado a subscrição da revista e também
através de cartas dirigidas à escritora mostrando a sua indignação.
O
carácter terrífico e grotesto de “A Lotaria” torna este conto
como o mais representativo da carreira de Shirley Jackson, como
também um dos mais importantes da literatura contemporânea.
Impossível ficar indiferente a esta história. Há algo de diabólico
no seu conteúdo, mas simultaneamente fascinante ao ponto de nos
questionarmos como é possível criar uma história tão
impressionante tanto quanto horrível. Frases como “Não tenhas mau
perder, Tessie.” e “Todos nós tivemos a mesma oportunidade.”
(p. 278) são esmagadoras e de uma crueldade sem precedentes e ao
mesmo tempo o reflexo daquilo que o ser humano é capaz de fazer a
terceiros, tal é o seu lado negro e obscuro.
“A
Lotaria e Outras Histórias” é a primeira obra publicada por
Shirley Jackson, em 1949, reunindo vinte e cinco dos mais de cem
contos que escreveu. Estrategicamente, “A Lotaria” é o último
conto desta colectânea, talvez porque terá maior impacto junto dos
leitores e aquele que dificilmente se esquecerá por ser tão tétrico
e grotesco.
No entanto, para quem já
estava familiarizado com os romances da escritora acima referidos e
até “A Lotaria” (três vezes adaptada para cinema e
encontrando-se novamente em fase de nova adaptação), irá, de certa
forma, surpreender-se com alguma candura no modo como algumas das
histórias são apresentadas. Talvez o carácter mais realista de
alguns dos contextos torne os personagens menos agressivos, mas
talvez mais dissimulados ou inquietos. Os contos reflectem de modo
alternado a realidade opressiva dos meios rurais mais fechados, mais
conservadores, mais preconceituosos, racistas, a necessidade em
dissimular a maldade aparentando ser alguém caridoso e temente a
Deus em oposição à ilusão da grande cidade, em especial, Nova
Iorque, as expectativas em subir na vida e destacar-se na sociedade
através da ideia de riqueza fácil e que rapidamente cai por terra,
pois afinal, também os americanos fantasiam com o sonho que criaram
e que não passa disso mesmo.
Nesta
colectânea somos presenteados com contos que não raras vezes
pensamos que dariam bons romances porque desejaríamos que a
narrativa continuasse, mas Shirley Jackson soube parar e nalguns
contos, creio que essa frustração criada no leitor terá sido
intencional. Por outro lado, há histórias que nos deixam
melancólicos, diria mesmo tristes, mas também inquietos, enervados
e irritados.
Shirley
Jackson soube analisar o ser humano nas suas várias dimensões, do
mesmo modo que tanto se compraz a fazer o bem, mas também quando faz
o mal (in)conscientemente. Nas obras de Shirley Jackson não importa
dizer se uns personagens são bons e outros maus, o importante é
aquilo que o homem é capaz de fazer e de dizer e até quando não
faz nada ou se mantém em silêncio.
Não
ficamos indiferentes com estas histórias de Shirley Jackson na
certeza de que a experiência com a narrativa breve desta escritora
contribuiu para consolidar a ideia de estarmos perante um dos grandes
vultos da literatura do século XX, mas também no seu contributo
para a compreensão do homem, numa perspectiva psicológica, mas
também na relação com os outros, a dimensão social, quer se trate
de uma pequena comunidade ou de uma grande cidade.
Destacaria, além de “A
Lotaria” outros contos que, na minha opinião, foram os que mais me
marcaram por razões distintas, ainda que toda a colectânea seja
bastante equilibrada no que concerne à qualidade das histórias. Os
insólitos “Como a minha mãe costumava fazer” (pp. 35-44) e
“Villager” (pp. 51-57), o cómico e tenebroso “O Bruxo” (pp.
65-69), o inesperado “Charles” (pp. 89-94), o dissimulado “Jardim
de Flores” (pp. 101-127), o insano “Colóquio” (pp. 139-141),
as expectativas e frustrações de “Elizabeth” (pp. 143-180), “O
Boneco” enervante (pp. 187-194), o assertivo “Claro” (pp.
213-218) e o inesperado “Estátua de Sal” (pp. 219-235)
Excertos:
-
Há muito, muito tempo - começou -, tinha uma irmãzinha, tal como a
tua. - O rapazinho ergueu os olhos para o homem, acenando a cada
palavra. - A minha irmãzinha - prosseguiu o homem - era tão bela e
tão simpática que eu gostava mais dela do que de qualquer coisa no
mundo. Então queres que te diga o que fiz? (...) Comprei-lhe um
cavalo de baloiço, e uma boneca, e um milhão de chupa-chupas -
disse o homem -, e depois peguei nela e pus as mãos em redor do seu
pescoço e belisquei-a e belisquei-a até ela estar morta. (…) E
depois peguei e cortei a cabeça dela e tirei-lhe a cabeça…
-
Cortaste-a toda aos pedaços? – perguntou o rapazinho sem fôlego.
-
Cortei-lhe a cabeça e as mãos e os pés e o cabelo e o nariz –
disse o homem – e bati-lhe com um pau e matei-a. (…) E peguei na
cabeça dela e puxei-lhe o cabelo todo e…
-
À sua irmãzinha? – perguntou ardentemente o rapazinho.
-
À minha irmãzinha – disse o homem com firmeza. – E pus a cabeça
dela numa jaula com um urso, e o urso comeu-a toda.
-
Ele comeu a cabeça toda? – perguntou o rapazinho.” (in “O
Bruxo”, pp. 67-68)
"-
Num período de crise internacional - disse o médico calmamente -,
quando nos deparamos, por exemplo, com a rápida desintegração dos
padrões culturais...
- Crise internacional - disse a Sra. Arnold. - Padrões. - Começou a chorar baixinho. - Ele disse que o homem não tinha o direito de não lhe guardar o 'Times' - prosseguiu histericamente, vasculhando o bolso em busca de um lenço - e começou a falar acerca do planeamento social a nível local, e na sobretaxa do rendimento líquido, e em conceitos geopolíticos, e na inflação deflacionária. – A voz da Sra. Arnold ergueu-se num uivo. – Ele disse mesmo inflação deflacionária.
- Crise internacional - disse a Sra. Arnold. - Padrões. - Começou a chorar baixinho. - Ele disse que o homem não tinha o direito de não lhe guardar o 'Times' - prosseguiu histericamente, vasculhando o bolso em busca de um lenço - e começou a falar acerca do planeamento social a nível local, e na sobretaxa do rendimento líquido, e em conceitos geopolíticos, e na inflação deflacionária. – A voz da Sra. Arnold ergueu-se num uivo. – Ele disse mesmo inflação deflacionária.
-
Sra. Arnold – disse o médico, contornando a secretária -, assim
não está a ajudar.
-
O que irá ajudar? – perguntou a Sra. Arnold. – Estarão
realmente todos loucos menos eu?
-
Sra. Arnold – disse o médico em tom grave -, quero que se
controle. Num mundo desorientado como o que temos hoje, a alienação
da realidade, muitas vezes…
-
Desorientado – disse a Sra. Arnold. Levantou-se. – Alienação –
disse. – Realidade. Antes que o médico a pudesse impedir, ela
dirigiu-se à porta e abriu-a. – Realidade – disse, e saiu.”
(in “Colóquio”, pp. 140-141)
"Tinha
uma imagem de pequenas crianças na cidade vestidas como os pais,
seguindo uma civilização mecânica em miniatura, caixas
registadoras de brincar de tamanhos cada vez maiores que os ajudavam
a entrar no mundo real, milhões de pequenas imitações que
tilintavam e sacudia e os preparavam para assumir os brinquedos
enormes e inúteis pelos quais os pais viviam." (in “Estátua
de Sal”, p. 225)
"Durante
um minuto, ninguém se moveu, e então todas as tiras de papel foram
abertas. Subitamente, todas as mulheres começaram a falar ao mesmo
tempo, perguntando:" Quem é?", "Quem o tirou?",
"São os Dunbar?", "Foram os Watson?" Depois, as
vozes começaram a dizer: "Foi o Hutchinson."
- Vai dizer ao teu pai - disse a Sra. Dunbar ao filho mais velho.
As pessoas começaram a olhar à sua volta para verem os Hutchinson. Bill Hutchinson estava parado e calado, fitando o papel que tinha na mão. De súbito, Tessie Hutchinson gritou para o Summers:
- Vai dizer ao teu pai - disse a Sra. Dunbar ao filho mais velho.
As pessoas começaram a olhar à sua volta para verem os Hutchinson. Bill Hutchinson estava parado e calado, fitando o papel que tinha na mão. De súbito, Tessie Hutchinson gritou para o Summers:
-
Não lhe deu tempo suficiente para tirar o papel que queria. Eu vi.
Não foi justo!
-
Não tenhas mau perder, Tessie – disse a Sra. Delacroix.
E
a Sra. Graves disse:
-
Todos nós tivemos a mesma oportunidade.” (in “A Lotaria”, pp.
277-278)
Texto da autoria de Jorge Navarro
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