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segunda-feira, 10 de junho de 2019

A Escolha do Jorge: “A Lotaria e Outras Histórias”


“A Lotaria e Outras Histórias”
Shirley Jackson 
(Cavalo de Ferro)
“- Doutor – disse -, como é que as pessoas percebem se estão a ficar loucas?” 
(p. 139)
Herdeira da tradição do gótico americano, Shirley Jackson (1916-1965) é um dos nomes incontornáveis da literatura do século XX cujas obras têm sido adaptadas ao grande ecrã, como o caso de “A Maldição de Hill House” (várias adaptações) e “Sempre Vivemos no Castelo” cujo filme estreou em Maio.
Mestre do suspense e do terror, Shirley Jackson tem a capacidade de agarrar por completo o leitor e arrastá-lo para o centro das narrativas como se tratasse de alguém a assistir de perto. Ninguém fica indiferente ao universo de Shirley Jackson, muito próximo do de Flannery O’Connor (1925-1964) e igualmente importante no contexto da literatura do século XX e ambas as escritoras também com uma obra relativamente curta, e que se notabilizaram como romancistas e contistas.

Mas creio que Shirley Jackson terá ido mais longe no modo como escreve sobre a natureza humana e, em especial, a maldade, tanto de forma evidente, como através da subtileza das suas palavras, do género de lobo com pele de cordeiro.
Shirley Jackson não tem qualquer pudor no modo como utiliza as palavras para matar alguém, seja com veneno, seja à pedrada, por vingança ou simplesmente por maldade pura, cumprindo rituais e tradições ancestrais. Este lado negro do homem é transversal à obra da escritora.
A originalidade das histórias a par do seu talento para escrever colocou Shirley Jackson entre os escritores de maior importância do século passado e quem lê as suas obras dificilmente as esquecerá, quer se trate do terror presente em “A Maldição de Hill House” ou o perturbador “Sempre Vivemos no Castelo” cujo ambiente fechado e preconceituoso esmaga qualquer um.
Mas o percurso literário de Shirley Jackson ficou marcado com a publicação do conto “A Lotaria” no “The New Yorker”, em 1949, tendo suscitado de imediato grande controversa ao ponto de muitos leitores terem cancelado a subscrição da revista e também através de cartas dirigidas à escritora mostrando a sua indignação.
O carácter terrífico e grotesto de “A Lotaria” torna este conto como o mais representativo da carreira de Shirley Jackson, como também um dos mais importantes da literatura contemporânea. Impossível ficar indiferente a esta história. Há algo de diabólico no seu conteúdo, mas simultaneamente fascinante ao ponto de nos questionarmos como é possível criar uma história tão impressionante tanto quanto horrível. Frases como “Não tenhas mau perder, Tessie.” e “Todos nós tivemos a mesma oportunidade.” (p. 278) são esmagadoras e de uma crueldade sem precedentes e ao mesmo tempo o reflexo daquilo que o ser humano é capaz de fazer a terceiros, tal é o seu lado negro e obscuro.
“A Lotaria e Outras Histórias” é a primeira obra publicada por Shirley Jackson, em 1949, reunindo vinte e cinco dos mais de cem contos que escreveu. Estrategicamente, “A Lotaria” é o último conto desta colectânea, talvez porque terá maior impacto junto dos leitores e aquele que dificilmente se esquecerá por ser tão tétrico e grotesco.
No entanto, para quem já estava familiarizado com os romances da escritora acima referidos e até “A Lotaria” (três vezes adaptada para cinema e encontrando-se novamente em fase de nova adaptação), irá, de certa forma, surpreender-se com alguma candura no modo como algumas das histórias são apresentadas. Talvez o carácter mais realista de alguns dos contextos torne os personagens menos agressivos, mas talvez mais dissimulados ou inquietos. Os contos reflectem de modo alternado a realidade opressiva dos meios rurais mais fechados, mais conservadores, mais preconceituosos, racistas, a necessidade em dissimular a maldade aparentando ser alguém caridoso e temente a Deus em oposição à ilusão da grande cidade, em especial, Nova Iorque, as expectativas em subir na vida e destacar-se na sociedade através da ideia de riqueza fácil e que rapidamente cai por terra, pois afinal, também os americanos fantasiam com o sonho que criaram e que não passa disso mesmo.
Nesta colectânea somos presenteados com contos que não raras vezes pensamos que dariam bons romances porque desejaríamos que a narrativa continuasse, mas Shirley Jackson soube parar e nalguns contos, creio que essa frustração criada no leitor terá sido intencional. Por outro lado, há histórias que nos deixam melancólicos, diria mesmo tristes, mas também inquietos, enervados e irritados.
Shirley Jackson soube analisar o ser humano nas suas várias dimensões, do mesmo modo que tanto se compraz a fazer o bem, mas também quando faz o mal (in)conscientemente. Nas obras de Shirley Jackson não importa dizer se uns personagens são bons e outros maus, o importante é aquilo que o homem é capaz de fazer e de dizer e até quando não faz nada ou se mantém em silêncio.
Não ficamos indiferentes com estas histórias de Shirley Jackson na certeza de que a experiência com a narrativa breve desta escritora contribuiu para consolidar a ideia de estarmos perante um dos grandes vultos da literatura do século XX, mas também no seu contributo para a compreensão do homem, numa perspectiva psicológica, mas também na relação com os outros, a dimensão social, quer se trate de uma pequena comunidade ou de uma grande cidade.
Destacaria, além de “A Lotaria” outros contos que, na minha opinião, foram os que mais me marcaram por razões distintas, ainda que toda a colectânea seja bastante equilibrada no que concerne à qualidade das histórias. Os insólitos “Como a minha mãe costumava fazer” (pp. 35-44) e “Villager” (pp. 51-57), o cómico e tenebroso “O Bruxo” (pp. 65-69), o inesperado “Charles” (pp. 89-94), o dissimulado “Jardim de Flores” (pp. 101-127), o insano “Colóquio” (pp. 139-141), as expectativas e frustrações de “Elizabeth” (pp. 143-180), “O Boneco” enervante (pp. 187-194), o assertivo “Claro” (pp. 213-218) e o inesperado “Estátua de Sal” (pp. 219-235)
Excertos:
- Há muito, muito tempo - começou -, tinha uma irmãzinha, tal como a tua. - O rapazinho ergueu os olhos para o homem, acenando a cada palavra. - A minha irmãzinha - prosseguiu o homem - era tão bela e tão simpática que eu gostava mais dela do que de qualquer coisa no mundo. Então queres que te diga o que fiz? (...) Comprei-lhe um cavalo de baloiço, e uma boneca, e um milhão de chupa-chupas - disse o homem -, e depois peguei nela e pus as mãos em redor do seu pescoço e belisquei-a e belisquei-a até ela estar morta. (…) E depois peguei e cortei a cabeça dela e tirei-lhe a cabeça…
- E cortaste-a toda aos pedaços? - perguntou o rapazinho sem fôlego.
- Cortei-lhe a cabeça e as mãos e os pés e o cabelo e o nariz - disse o homem - e bati-lhe com um pau e matei-a. (...) E peguei na cabeça dela e puxei-lhe o cabelo todo e...
- À sua irmãzinha? - perguntou ardentemente o rapazinho.
- À minha irmãzinha - disse o homem com firmeza. - E pus a cabeça dela numa jaula com um urso, e o urso comeu-a toda.
- Ele comeu a cabeça toda? - perguntou o rapazinho."
- Cortaste-a toda aos pedaços? – perguntou o rapazinho sem fôlego.
- Cortei-lhe a cabeça e as mãos e os pés e o cabelo e o nariz – disse o homem – e bati-lhe com um pau e matei-a. (…) E peguei na cabeça dela e puxei-lhe o cabelo todo e…
- À sua irmãzinha? – perguntou ardentemente o rapazinho.
- À minha irmãzinha – disse o homem com firmeza. – E pus a cabeça dela numa jaula com um urso, e o urso comeu-a toda.
- Ele comeu a cabeça toda? – perguntou o rapazinho.” (in “O Bruxo”, pp. 67-68)

"- Num período de crise internacional - disse o médico calmamente -, quando nos deparamos, por exemplo, com a rápida desintegração dos padrões culturais...
- Crise internacional - disse a Sra. Arnold. - Padrões. - Começou a chorar baixinho. - Ele disse que o homem não tinha o direito de não lhe guardar o 'Times' - prosseguiu histericamente, vasculhando o bolso em busca de um lenço - e começou a falar acerca do planeamento social a nível local, e na sobretaxa do rendimento líquido, e em conceitos geopolíticos, e na inflação deflacionária. – A voz da Sra. Arnold ergueu-se num uivo. – Ele disse mesmo inflação deflacionária.
- Sra. Arnold – disse o médico, contornando a secretária -, assim não está a ajudar.
- O que irá ajudar? – perguntou a Sra. Arnold. – Estarão realmente todos loucos menos eu?
- Sra. Arnold – disse o médico em tom grave -, quero que se controle. Num mundo desorientado como o que temos hoje, a alienação da realidade, muitas vezes…
- Desorientado – disse a Sra. Arnold. Levantou-se. – Alienação – disse. – Realidade. Antes que o médico a pudesse impedir, ela dirigiu-se à porta e abriu-a. – Realidade – disse, e saiu.” (in “Colóquio”, pp. 140-141)uido, e em conceitos geopolíticos, e na inflação deflacionária.
- Sra. Arnold - disse o médico, contornando a secretária -, assim não está a ajudar.
- O que irá ajudar? - perguntou a Sra. Arnold. - Estarão realmente todos loucos menos eu?
- Sra. Arnold - disse o médico em tom grave -, quero que se controle. Num mundo desorientado como o que temos hoje, a alienação da realidade, muitas vezes...
- Desorientado - disse a Sra. Arnold. Levantou-se. - Alienação - disse. - Realidade. - Antes que o médico a pudesse impedir, ela dirigiu-se à porta e abriu-a. - Realidade - disse, e saiu."

"Tinha uma imagem de pequenas crianças na cidade vestidas como os pais, seguindo uma civilização mecânica em miniatura, caixas registadoras de brincar de tamanhos cada vez maiores que os ajudavam a entrar no mundo real, milhões de pequenas imitações que tilintavam e sacudia e os preparavam para assumir os brinquedos enormes e inúteis pelos quais os pais viviam." (in “Estátua de Sal”, p. 225)

"Durante um minuto, ninguém se moveu, e então todas as tiras de papel foram abertas. Subitamente, todas as mulheres começaram a falar ao mesmo tempo, perguntando:" Quem é?", "Quem o tirou?", "São os Dunbar?", "Foram os Watson?" Depois, as vozes começaram a dizer: "Foi o Hutchinson."
- Vai dizer ao teu pai - disse a Sra. Dunbar ao filho mais velho.
As pessoas começaram a olhar à sua volta para verem os Hutchinson. Bill Hutchinson estava parado e calado, fitando o papel que tinha na mão. De súbito, Tessie Hutchinson gritou para o Summers:
- Não lhe deu tempo suficiente para tirar o papel que queria. Eu vi. Não foi justo!
- Não tenhas mau perder, Tessie – disse a Sra. Delacroix.
E a Sra. Graves disse:
- Todos nós tivemos a mesma oportunidade.” (in “A Lotaria”, pp. 277-278)ha na mão. De súbito, Tessie Hutchinson gritou para o Summers:
- Não lhe deu tempo suficiente para tirar o papel que queria. Eu vi. Não foi justo!
- Não tenhas mau perder, Tessie - disse a Sra. Delacroix.
E a Sra. Graves disse:
- Todos nós tivemos a mesma oportunidade."


Texto da autoria de Jorge Navarro

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