Viagens,
Olga Tokarczuk, 2007
Quando
comprei este livro, o primeiro gesto que tive foi procurar o índice,
para perceber que viagens a autora nos queria propor. Mas não
encontrei nenhum índice e à medida que fui começando a leitura,
fui descobrindo capítulos ou fragmentos, mais ou menos curtos,
descontínuos, que fui assumindo como uma espécie de “remendos”
que teriam um nexo e que iriam constituir uma manta num patchwork
final. “Viagens” foi o título escolhido pela tradutora
Teresa Fernandes Swiatkiewicz para a edição portuguesa do original
polaco “Bieguni”, também o título de um capítulo a meio do
livro que designa uma seita de antigos crentes ortodoxos para quem o
movimento contínuo era uma forma de desapego, de fugir do mal e
garantir a liberdade. Das 92 edições em 18 línguas que “Bieguni”
já tem e que foi galardoado com o Man Booker 2018, considero o
título escolhido – “Viagens” – uma excelente tradução para
um livro difícil de caracterizar.
Volto
à ideia do “retalho”. Não me foi fácil avançar na leitura
deste livro. Podia ter saltado de retalho em retalho, mas segui
disciplinada e ordeiramente na leitura, como se de um romance com
princípio meio e fim, mas a ideia de que aqueles retalhos no fim
iriam fazer sentido e que alguns deixados soltos iriam no fim
encontrar o parceiro a que se juntar surgiu-me, sobretudo na história
misteriosa daquele casal de férias numa ilha croata em que a mulher
e o filho desaparecem. O que lhes terá acontecido?
Outras
histórias nos são contadas: Philip Verheyen, o anatomista, médico
que descobriu o tendão de Aquiles e registou em desenhos meticulosos
e perfeitos os detalhes do corpo humano, porque para ele “ver é
saber”. Tendo perdido uma perna muito jovem, por lhe ter sido
amputada na sequência de um incidente com um prego que lhe provocou
uma infecção irreversível, viveu ao longo da vida com dores
insuportáveis na perna amputada, a que chamava “fantasmas”.
Tendo conservado o membro amputado numa solução própria para que
não se degradasse e apesar do seu desejo de que, quando morresse, a
perna amputada acompanhasse o seu corpo, a verdade é que tal não
aconteceu. Consideraram que Philip Verheyen tinha morrido louco.
Outra
história é a da colecção de amostras anatómicas de Ruysch que
foi comprada pelo czar Pedro I da Rússia. Para Charlotta, filha de
Ruysch, que nunca casou e que dedicou toda a vida ao trabalho do pai,
aquela separação da colecção de peças anatómicas que o pai
criara e que ela sempre acompanhara, foi um desgosto que a levou a
pensar partir num dos barcos ancorados no porto holandês, fazendo-se
passar por homem…
E a história de Annuszka da sua vida com um filho doente, um marido
“mutilado” de guerra, com um dia por semana em que a sogra a
substitui, um dia de folga como cuidadora, um dia só para si em que
deambula pela cidade de Kiev com o objectivo de se sentar por
momentos numa igreja, um momento para chorar. É num desses dias que
encontra aquela mulher bizarramente vestida, à saída do metro,
gritando imprecações enquanto se desloca continuamente. Uma
bieguni.
A
história de Angelo Soliman, contada pela sua filha Josephine em
cartas dirigidas ao imperador Francisco I da Áustria. Trazido do
norte de África como escravo, as suas qualidades de pessoa
encantadora, hábil político e homem muito inteligente, fizeram que
se tornasse uma pessoa prestigiada na corte e digna de um lugar de
destaque no seio das amizades mais íntimas do imperador. No entanto,
esses atributos não obstaram a que no final da sua vida, devido ao
exotismo da sua raça, o imperador tivesse dissecado e embalsamado o
corpo de Soliman e o pusesse em exposição ao lado de animais
selvagens. As cartas pungentes de Josephine Soliman rogam que o
imperador seja sensível e lhe entregue o corpo do pai, para que lhe
seja feito um funeral digno de um ser humano. No meio não deixa de
pôr o dedo na ferida, ao referir o poder dos senhores e dos tiranos
sobre os corpos dos seus servos.
Outra
história belíssima é o reencontro de uma mulher com o antigo
namorado que deixara na Polónia há muitos anos atrás. Os anos
passaram, a distância também e tudo é estranho: ele, a cidade, a
Polónia. Ele está à morte e ela vai numa “missão óbvia e
asséptica, uma missão de amor”.
A
história mirabolante de Chopin que tinha pedido para ser sepultado
na sua terra. E assim, ele teve dois funerais: o primeiro na igreja
da Madeleine e o segundo meses depois em Varsóvia. A irmã de Chopin
conseguiu cumprir o pedido do irmão levando o coração dele para
ser sepultado em Varsóvia.
Por
fim, Kairos é a história de Karen e do seu marido – o professor –
vinte anos mais velho que ela. Todos os anos é convidado a proferir
palestras sobre a Grécia Antiga a bordo de um navio que percorre as
ilhas gregas. Numa queda fatal, o derrame cerebral que lhe dita o fim
da vida é descrito de forma extraordinária como se de um dilúvio
de sangue se tratasse, o qual vai aos poucos apagando todos os
traços, memórias e acontecimentos da vida do professor.
Tudo
histórias à volta do corpo, dos corpos, dos defeitos físicos, das
monstruosidades, dos detalhes dos corpos, das arrumações dos
órgãos, da sua conservação, da plastinação. Viagens no interior
dos corpos. Sempre as viagens.
Viagens,
tudo viagens, lembrando que, logo no início, a narradora se
apresenta como uma nómada, alguém que nunca aprendeu um ofício,
que vive de biscates, que prefere a instabilidade e a precariedade,
como um rio. É o que sai da norma, o incompleto e o estragado que a
atrai.
Neste
livro há pontos que surgem com alguma frequência como a paixão
pala Anatomia como já referi, mas também, por exemplo, a presença
das baleias e aqui não poderei deixar de recordar a história de
Eryk que aprendeu a falar inglês na cadeia através da leitura de
Moby Dick!
Este é pois um livro surpreendente em que apetece voltar atrás,
reler uma passagem mais densa, voltar ao princípio e descobrir um
aspecto para o qual não estávamos despertos/as numa primeira
leitura, encontrando as linhas que cosem os retalhos, os pontos de
encontro que casam um retalho com outro. Um “caos” onde nos
organizamos, onde nos descobrimos, onde nos encontramos. Um livro a
que se pode sempre voltar e onde se encontram detalhes com que nos
identificamos como viajantes, como peregrinos, como amantes da viagem
pelos livros.
3
de Junho de 2019
Almerinda
Bento
Sem comentários:
Enviar um comentário