“Sou
Yerney de Betajnova. Fizeram-me uma grande injustiça e é essa a
razão por que ando pelo mundo inteiro à procura da justiça que
Deus enviou à Terra e que os juízes detêm nos seus livros.”
(p.
60)
“Vai
levar muito tempo a encontrá-la, meu amigo. Já muitos vieram em
busca dela… Eram muitos e ficaram pelo caminho, e os «Pôncios
Pilatos» lavaram daí as mãos.”
(p. 56)
Em
boa hora regressa às livrarias “A Justiça de Yerney”, uma das
obras mais significativas de Ivan Cankar (1876-1918), um nome maior
da literatura eslovena do século XX. A 1ª edição desta novela em
língua portuguesa ocorreu em 2004, ano em que a Eslovénia integrou
a União Europeia a par de outros nove países da Europa Central e de
Leste. Como forma de dar a conhecer um pouco da literatura desses
países, a Cavalo de Ferro publicou uma colecção de dez obras,
divulgando, dessa forma, escritores e obras de países como Hungria,
Eslováquia, Polónia, Estónia, Chipre, Eslovénia, entre outros.
Publicado inicialmente em
1907, “A Justiça de Yerney” remonta às vésperas da 1ª Guerra
Mundial, numa época em que a Eslovénia integrava o Império
Austro-Húngaro marcado por fortes tensões políticas. Como o
próprio título indica, o tema central desta novela de Ivan Cankar é
o da justiça e tendo passado mais de um século da sua publicação,
esta obra continua actual como nunca, sobretudo quando somos
surpreendidos regularmente com casos bastante complexos em que a
justiça aparentemente é tida como inoperante.
O
caso específico desta novela centra-se num problema doméstico na
medida em que Yerney, o personagem principal, já de idade avançada,
é despedido da herdade dos Sitar, numa pequena localidade eslovena,
quando o novo proprietário assume o comando da herdade na sequência
da morte do pai.
Yerney
é um homem que dedicou a sua vida ao trabalho e a Deus. Sob a sua
orientação e responsabilidade, Yerney construiu a herdade dos
Sitar, no fundo, contribuiu para a sua afirmação e riqueza da
família. Humilde, honesto e trabalhador, Yerney é um homem com uma
fé fervorosa e inabalável em Deus, crente nos desígnios divinos e
com um enorme sentido de justiça. Yerney é o mais puro dos homens e
ciente de que a humanidade é herdeira da lei divina que se encontra
escrita nos livros do Direito.
Mas
a vida trocou as voltas a Yerney e este, já perto do fim da sua
vida, vê-se a braços com o seguinte dilema, percorrendo montes e
vales na Eslovénia, entre sábios, juízes e padres, dirigindo-se à
longínqua Viena em busca de uma audiência com o Imperador, tudo
para que se cumpra a justiça. “Agora,
diga-me, a quem pertence a macieira: ao homem que a plantou e
enxertou, ou ao que ao passar só colheu as maçãs quando estavam
maduras?” (pp. 57-58)
Os
vários interlocutores de Yerney compreendem o seu sentido de justiça
e a própria ideia que subjaz à sua pretensão que é encarada como
loucura da parte deste dado não fazer sentido um assunto doméstico
ganhar relevo num contexto nacional e até imperial. Mas Yerney não
encara o problema da mesma forma. “Fizeram-me
uma grande injTexto da autoria de Jorge Navarroustiça e é essa a razão por que ando pelo mundo
inteiro à procura da justiça que Deus enviou à Terra e que os
juízes detêm nos seus livros.” (p. 60) Há mesmo quem tenha pena
de Yerney e seja solidário com o respeitoso idoso, no entanto, a
causa está perdida, acabando por se tornar um não-assunto. “A tua
fé é inabalável, Yerney, e quem te privar dela pecará gravemente.
Esperarei por ti até voltares, Yerney. (…) Diz-me também, Yerney,
que farás quando regressares sem teres encontrado a justiça, seja
diante de Deus ou diante do Imperador.” (p. 48)
À
medida que Yerney se vê confrontado com a inoperância da justiça e
até a incompreensão dos seus interlocutores, Yerney percebe que a
aplicação das leis como forma de aplicar a justiça entre os homens
já não reflecte a lei divina, pondo, dessa forma, os tribunais e os
juízes em causa. “Aqui não é a casa da justiça; é um lugar
maldito, o refúgio de processos vergonhosos e de perjúrio…” (p.
44) “Não, esta casa não é a casa da justiça; esta é a casa das
mentiras, da hipocrisia, do banditismo que originais. Não sois os
servos das palavras e leis de Deus, mas antes das de Satanás e da
sua injustiça.” (p. 64)
O
caso adquire proporções inimagináveis e Yerney, cada vez mais
maltratado e depauperado, vai perdendo a lucidez face ao assunto que
o leva a apelar pela aplicação da justiça divina. Tratado como
“imbecil” e “criança idiota” (p. 73), Yerney começou a
sentir uma dualidade de sentimentos, “a mágoa e a fé
digladiavam-se no seu coração” (p. 91) e nem face à admoestação
do padre da sua terra natal quis dar ouvidos. Yerney perdera
completamente o sentido de realidade. Yerney enlouquecera na busca
pela justiça. “Rende-te, mesmo perante a injustiça. No final,
Deus fará a correcção.” (p. 91)
E
assim fez!
“Deus
tenha misericórdia de Yerney, dos seus juízes e de todos os
pecadores.” (p. 94)
Texto da autoria de Jorge Navarro
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