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segunda-feira, 3 de junho de 2019

A Escolha do Jorge: Dor


“Fez aquilo que devia durante demasiado tempo, chegou a altura de fazer o que quer.” 

(p. 91)
Zeruya Shalev (n. 1959) é uma das mais reconhecidas escritoras israelitas da actualidade e mais lidas no mundo, a par de nomes como Amos Oz e David Grossman.
“Dor” é a primeira obra da escritora a ser publicada em língua portuguesa, constituindo uma das grandes surpresas no mercado editorial no início deste ano, na medida em que nos apresenta uma narrativa dolorosamente bela, urdida em modo confessional e intimista, trazendo à luz a história de uma família que vive em Jerusalém e que luta, na medida do possível, pela felicidade, ou iludirem-se nas suas circunstâncias criando essa ilusão, tal como todas as outras pessoas. Não se tratando de um romance político, são muitas as leituras que o leitor consegue fazer atendendo à legislação em vigor em Israel no que concerne a algumas temáticas, mas também o quotidiano das famílias, num reduto geográfico complexo do ponto de vista político, religioso e cultural, no meio de tantas contendas e ódio à mistura que se arrastam há décadas e sem um fim pacífico à vista.
Zeruya Shalev nunca alude ao conflito israelo-palestiniano no decurso da narrativa, mas, na verdade, constitui em si mesmo o pano de fundo de parte da obra, do mesmo modo quando a questão do serviço militar obrigatório para rapazes e raparigas que tem um impacto diferente no seio das famílias, com consequências, por vezes desastrosas na vida dos jovens.
Em suma, as questões de natureza política nunca são objectivadas ao longo do romance, porém o leitor é sempre levado a questionar o modo como a sociedade israelita está organizada e de que modo, perante a natureza complexa daquele país, como é possível, no quotidiano, encarar a vida com normalidade quando, de um momento para o outro, tudo pode acontecer, como um atentado, e a vida de determinada família sofrer um revés.
Há livros que nos marcam intensamente, que nos despertam para questões da actualidade, mas que, em certa medida, nos ajudam a olhar para o ser humano e para a humanidade em geral numa tentativa de compreensão e tolerância de modo a concluirmos que não importa a geografia, dado que a felicidade é, em si mesma, a missão da nossa passagem pelo mundo, independentemente das questões de natureza política que, tantas vezes, se apresentam como obstáculos à vida das pessoas, mesmo em questões práticas de quotidiano.
Aludindo ao conteúdo da narrativa de modo ligeiro porque vale mesmo a pena desfrutar da obra em pleno, explorando-a capítulo a capítulo, “Dor” apresenta Iris no centro da história, uma mulher com quase 50 anos, vítima de abandono do seu namorado na adolescência, episódio que quase a levou ao suicídio e, já mais tarde, vítima de um atentado terrorista por se encontrar no sítio errado à hora errada, situação que a deixou deveras fragilizada física, psicológica e emocionalmente.
Num microcosmos familiar onde reinam as omissões, as mentiras e o permanente questionar o sentido da vida e da felicidade, pais e filhos tentam o que podem e o que conseguem para levar o barco a bom porto. É neste contexto que Zeruya Shalev tenta demonstrar que a vida familiar em Jerusalém e em Tel Aviv não é diferente das vivências passadas numa qualquer cidade europeia ou outro ponto geográfico, independentemente das vicissitudes que conhecemos daquela região.
Iris reencontra Eytan, o seu amor da adolescência, por mero acaso, voltando a ser correspondida. Ambos tentam recuperar o tempo perdido numa guerra desenfreada entre corpos, coração e consciência. Iris, a mulher de quase 50 anos transforma-se na adolescente que não tem tempo a perder, tratando-se da causa da sua vida, um amor nunca esquecido, mas cujo coração, desde cedo, elegera como a razão dos seus batimentos. A vida de Iris está prestes a dar uma volta, uma revolução a nível pessoal e familiar em que terá de ser pesado entre viver o que se perdeu e manter a família unida quando esta mais precisa.
Intenso, esmagador e dilacerante, o leitor embarca nesta viagem semelhante a uma luta interna travada entre o coração e a razão em que nos revemos também nalguns momentos, tornando a narrativa bastante verosímil, muito próxima da realidade, em que todos lutamos, sofremos, sobrevivemos e em que o amor, o tão desejado amor, pode tornar a vida e a realidade mais leve, conferindo-lhe também um sentido ainda que nem sempre alcançado.
Excertos:
"(...)"Vai lá reparar o teu sistema, eu cá me arranjo com eles", ele puxou o fecho do blusão para cima e para baixo, avançando e recuando, e o ligeiro movimento dos seus dedos no fecho-éclair assinou a sentença que até aí pairava entre ela e ele, e entre dezenas de outras casas nas quais as pessoas se preparavam para a sua rotina quotidiana, lavavam o corpo que viria a ser enterrado, se baixavam para calçar sapatos nos pés que daí a precisamente uma hora seriam amputados, passavam creme pela pele que viria a arder, se separavam à pressa de um filho que não veriam mais, mudavam a fralda de um bebé que tinha apenas mais uma hora de vida, e tal como eles, ela vestiu uma blusa de riscas larga e calças de ganga, prendeu descuidadamente o cabelo porque voltaria para casa em breve, prometeu a Omer fazer pizza para o almoço se ele saísse rapidamente do esconderijo, preparou as sanduíches que meteu na mochila deles e, antes de sair, ainda teve tempo de fazer um rabo de cavalo especialmente bonito para Alma.” (pp. 34-35)
"(...) Ultimamente temos um problema com as palavras, pensa ela, utilizamo-las para esconder em vez de revelar. Traímos com as palavras, e talvez isso seja pior do que trair o outro, traímos com as palavras e elas castigam-nos." (p. 90)
"Os filhos cresceram e com eles as frustrações, as zangas, os rancores, as contas, as desilusões. Só não cresceu o amor, e por isso, mesmo que não tenha diminuído, o seu lugar no contexto reduziu-se. Se ao menos fôssemos capazes de amar tanto como de odiar, de ajudar tanto como de prejudicar, de ter e dar prazer tal como de torturar e sofrer. Parece que com os anos a capacidade para fazer sofrer se torna mais sofisticada ao passo que a aptidão para dar prazer diminui. Será que isso depende da nossa idade ou da idade da nossa relação?" (p. 185)
ara calçar sapatos nos pés que daí a precisamente uma hora seriam amputados, passavam creme pela pele que viria a arder, se separavam à pressa de um filho que não veriam mais, mudavam a fralda de um bebé que tinha apenas mais uma hora de vida, e tal como eles, ela vestiu uma blusa de riscas larga e calças de ganga, prendeu descuidadamente o cabelo porque voltaria para casa em breve, prometeu a Omer fazer pizza para o almoço se ele saísse rapidamente do esconderijo, preparou as sanduíches que meteu na mochila deles e, antes de sair, ainda teve tempo de fazer um rabo de cavalo especialmente bonito para Alma."
Texto da autoria de Jorge Navarro

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