“Fez aquilo que devia
durante demasiado tempo, chegou a altura de fazer o que quer.”
(p.
91)
Zeruya
Shalev (n. 1959) é uma das mais reconhecidas escritoras israelitas
da actualidade e mais lidas no mundo, a par de nomes como Amos Oz e
David Grossman.
“Dor”
é a primeira obra da escritora a ser publicada em língua portuguesa,
constituindo uma das grandes surpresas no mercado editorial no início
deste ano, na medida em que nos apresenta uma narrativa dolorosamente
bela, urdida em modo confessional e intimista, trazendo à luz a
história de uma família que vive em Jerusalém e que luta, na
medida do possível, pela felicidade, ou iludirem-se nas suas
circunstâncias criando essa ilusão, tal como todas as outras
pessoas. Não se tratando de um romance político, são muitas as
leituras que o leitor consegue fazer atendendo à legislação em
vigor em Israel no que concerne a algumas temáticas, mas também o
quotidiano das famílias, num reduto geográfico complexo do ponto de
vista político, religioso e cultural, no meio de tantas contendas e
ódio à mistura que se arrastam há décadas e sem um fim pacífico
à vista.
Zeruya
Shalev nunca alude ao conflito israelo-palestiniano no decurso da
narrativa, mas, na verdade, constitui em si mesmo o pano de fundo de
parte da obra, do mesmo modo quando a questão do serviço militar
obrigatório para rapazes e raparigas que tem um impacto diferente no
seio das famílias, com consequências, por vezes desastrosas na vida
dos jovens.
Em
suma, as questões de natureza política nunca são objectivadas ao
longo do romance, porém o leitor é sempre levado a questionar o
modo como a sociedade israelita está organizada e de que modo,
perante a natureza complexa daquele país, como é possível, no
quotidiano, encarar a vida com normalidade quando, de um momento para
o outro, tudo pode acontecer, como um atentado, e a vida de
determinada família sofrer um revés.
Há
livros que nos marcam intensamente, que nos despertam para questões
da actualidade, mas que, em certa medida, nos ajudam a olhar para o
ser humano e para a humanidade em geral numa tentativa de compreensão
e tolerância de modo a concluirmos que não importa a geografia,
dado que a felicidade é, em si mesma, a missão da nossa passagem
pelo mundo, independentemente das questões de natureza política
que, tantas vezes, se apresentam como obstáculos à vida das
pessoas, mesmo em questões práticas de quotidiano.
Aludindo
ao conteúdo da narrativa de modo ligeiro porque vale mesmo a pena
desfrutar da obra em pleno, explorando-a capítulo a capítulo, “Dor”
apresenta Iris no centro da história, uma mulher com quase 50 anos,
vítima de abandono do seu namorado na adolescência, episódio que
quase a levou ao suicídio e, já mais tarde, vítima de um atentado
terrorista por se encontrar no sítio errado à hora errada, situação
que a deixou deveras fragilizada física, psicológica e
emocionalmente.
Num
microcosmos familiar onde reinam as omissões, as mentiras e o
permanente questionar o sentido da vida e da felicidade, pais e
filhos tentam o que podem e o que conseguem para levar o barco a bom
porto. É neste contexto que Zeruya Shalev tenta demonstrar que a
vida familiar em Jerusalém e em Tel Aviv não é diferente das
vivências passadas numa qualquer cidade europeia ou outro ponto
geográfico, independentemente das vicissitudes que conhecemos
daquela região.
Iris
reencontra Eytan, o seu amor da adolescência, por mero acaso,
voltando a ser correspondida. Ambos tentam recuperar o tempo perdido
numa guerra desenfreada entre corpos, coração e consciência. Iris,
a mulher de quase 50 anos transforma-se na adolescente que não tem
tempo a perder, tratando-se da causa da sua vida, um amor nunca
esquecido, mas cujo coração, desde cedo, elegera como a razão dos
seus batimentos. A vida de Iris está prestes a dar uma volta, uma
revolução a nível pessoal e familiar em que terá de ser pesado
entre viver o que se perdeu e manter a família unida quando esta
mais precisa.
Intenso, esmagador e
dilacerante, o leitor embarca nesta viagem semelhante a uma luta
interna travada entre o coração e a razão em que nos revemos
também nalguns momentos, tornando a narrativa bastante verosímil,
muito próxima da realidade, em que todos lutamos, sofremos,
sobrevivemos e em que o amor, o tão desejado amor, pode tornar a
vida e a realidade mais leve, conferindo-lhe também um sentido ainda
que nem sempre alcançado.
Excertos:
"(...)"Vai
lá reparar o teu sistema, eu cá me arranjo com eles", ele
puxou o fecho do blusão para cima e para baixo, avançando e
recuando, e o ligeiro movimento dos seus dedos no fecho-éclair
assinou a sentença que até aí pairava entre ela e ele, e entre
dezenas de outras casas nas quais as pessoas se preparavam para a sua
rotina quotidiana, lavavam o corpo que viria a ser enterrado, se
baixavam para calçar sapatos nos pés que daí a precisamente uma
hora seriam amputados, passavam creme pela pele que viria a arder, se
separavam à pressa de um filho que não veriam mais, mudavam a
fralda de um bebé que tinha apenas mais uma hora de vida, e tal como
eles, ela vestiu uma blusa de riscas larga e calças de ganga,
prendeu descuidadamente o cabelo porque voltaria para casa em breve,
prometeu a Omer fazer pizza para o almoço se ele saísse rapidamente
do esconderijo, preparou as sanduíches que meteu na mochila deles e,
antes de sair, ainda teve tempo de fazer um rabo de cavalo
especialmente bonito para Alma.” (pp. 34-35)
"(...)
Ultimamente temos um problema com as palavras, pensa ela,
utilizamo-las para esconder em vez de revelar. Traímos com as
palavras, e talvez isso seja pior do que trair o outro, traímos com
as palavras e elas castigam-nos." (p. 90)
"Os
filhos cresceram e com eles as frustrações, as zangas, os rancores,
as contas, as desilusões. Só não cresceu o amor, e por isso, mesmo
que não tenha diminuído, o seu lugar no contexto reduziu-se. Se ao
menos fôssemos capazes de amar tanto como de odiar, de ajudar tanto
como de prejudicar, de ter e dar prazer tal como de torturar e
sofrer. Parece que com os anos a capacidade para fazer sofrer se
torna mais sofisticada ao passo que a aptidão para dar prazer
diminui. Será que isso depende da nossa idade ou da idade da nossa
relação?" (p. 185)
Texto da autoria de Jorge Navarro
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