Em
Tudo havia Beleza [Ordesa], Manuel Vilas, 2018
“Obrigada à
vida, que me deu tanto.
Deu-me o riso e
deu-me o pranto.
Assim distingo a
sorte do quebranto,
os dois materiais
que compõem o meu canto,
e o canto de
vocês, que é o mesmo canto,
e o canto de
todos, que é o meu próprio canto.”
Violeta
Parra
Abrir
um livro em que o autor tenha escolhido para epígrafe este belo
poema de Violeta Parra é, desde logo, um bom augúrio. À medida que
se vai progredindo no livro, constituído por centena e meia de
capítulos ou quadros, alguns muito breves, entramos na intimidade do
autor/narrador que logo no início nos fala da sua dor e da
impossibilidade de a medir ou quantificar. No seu caso, a somar aos
infortúnios ou percalços da vida, a dor pela perda do pai e da mãe.
Uma dor que ele vai tentar superar, se é que tal é possível!, pela
escrita deste livro e pela fuga para um lugar mágico da sua
infância, um lugar num vale cercado de montanhas onde foi muito
feliz com os pais. Ordesa é esse lugar mágico, “Ordesa” é o
nome original deste livro traduzido por Vasco Gato e que na sua
versão portuguesa é “Em Tudo havia Beleza”.
Professor
durante 23 anos, com um historial de abuso de drogas e de álcool a
que consegue sobreviver, pai de dois filhos com quem a comunicação
não é fácil, o seu divórcio aos 52 anos vai ter um efeito novo na
sua vida. Tudo tem de ser reorientado, tudo passa a ter outro
significado que o vai levar a dar à vida e morte dos pais uma
importância que antes nunca tinha dado. Ele projecta-se nos pais,
culpa-se por não lhes ter feito as perguntas para respostas que hoje
já não pode ter, e antevê nos filhos aquilo que eles também
sentirão quando ele já não existir. Sobretudo, culpa-se por aquilo
que deixou de fazer, por aquilo que não verbalizou , pelos abraços
que nunca conseguiram dar, talvez por pudor, as provas de amor que
ficaram por dar e que agora já não são possíveis de demonstrar.
Muitas vezes pensa e coloca-se no papel de uma terceira pessoa que
lhe fala, lhe dá conselhos, ideias e sugestões, como que se
distanciando dele, assumindo uma voz crítica. Há aspectos a que
volta, que repisa, que repete, vertendo para o papel os medos, as
dúvidas, as hesitações, os fantasmas.
Por
isso, ao lê-lo senti que era um livro que fazia muito sentido, que
fazia todo o sentido, porque é muito verdadeiro, muito palpável.
Revi-me muitas vezes nele, encontrei-me nele e dei por mim por vezes
a pensar: isto podia ter sido escrito por mim. Mas também penso que,
pelo facto de a dor da morte e da perda definitiva estar sempre
subjacente no livro, a sua leitura não será fácil para quem tiver
esse sentimento de perda e de luto ainda muito recente. Não é
fácil.
Enquanto
é muito preciso nas datas de muitos acontecimentos da sua vida –
nascimento em 1962; “No dia 9 de Junho de 2014 deixei de beber”;
anos do nascimento, casamento e cremação dos pais; concepção em
Novembro de 1961; “Escrevo estas palavras a 9 de Maio de 2015”
– a data do seu divórcio é imprecisa pois “não se sabe
muito bem o momento, pois não é uma data, mas um processo…”
É crítico e cáustico relativamente à instituição casamento.
Transcrevo duas passagens, a primeira decorrente dum almoço com
gente da cultura para que foi convidado pelo rei Felipe e por Letizia
“É normal
sentir compaixão pelos casais, especialmente pelos casais que
começam a acumular anos de vínculo conjugal, porque todos sabemos
que o casamento é a mais terrível das instituições humanas, pois
requer sacrifício, requer renúncia, requer negação do instinto,
requer mentira atrás de mentira, proporcionando em troca a paz
social e a prosperidade económica.” (pág. 40)
A segunda, em que
recorda o tio Rachmaninov, o irmão do pai
“E, para
cúmulo, o Rachma divorciou-se. Isso é que foi espantoso.(…) O
mais curioso é que lhe invejei essa vida. Julgo que o casamento de
longa duração não é próprio da natureza humana. Fico contente
que o Rachma tivesse sabido dar-se conta disso. Imagino que tenha
sido isso. Os homens aceitam os casamentos de longa duração porque
deixam de acreditar na juventude.
Penso que após
o seu divórcio se terá transformado noutro homem. Bem, entendo
assim que o Rachma disse não a essa ordenação simbólica da
realidade que existe por trás do casamento de longa duração, que é
um pesadelo, que é uma prisão; claro que quem vive nesses
casamentos sorri, e parece tratar-se de um sorriso verdadeiro. Acho
que os casamentos de longa duração não valem a pena, percebo que
esta afirmação seja exagerada, mas a renúncia às paixões também
é um exagero do sacrifício razoável. Certos antropólogos dizem
que a monogamia não é natural. Essa feira interminável de
infidelidades entre homens e mulheres, de mal-entendidos dolorosos,
está por trás da imposição da monogamia.
Talvez tenha
sido o capitalismo eclesiástico a inventar os casamentos de longa
duração.” (págs. 347 e 348)
E
depois os lugares pontuam as diferentes fases da vida, desde logo
Barbastro na região do Alto Aragão onde nasceu, Saragoça onde
estudou, Madrid a imensa capital política, Ordesa e as montanhas que
a cercam, a poderosa Catalunha ligada às viagens do pai quando o
negócio do têxtil estava florescente e a Galiza onde o irmão do
pai casou e se estabeleceu. Um mosaico da Espanha franquista, da
Espanha pobre a que a sua família sempre pertenceu mesmo quando a
prosperidade momentânea do caixeiro-viajante ou o sonho da sala
exclusivamente usada pelas visitas da mãe não passaram de um breve
episódio nas suas vidas. E depois fica o desamparo, a solidão,
apanágio de quem é pobre, de quem só pode comprar
electrodomésticos de marca branca, ou de quem opta por ter uma sala
grande sem serventia em vez de uma casa de banho em condições! Do
outro lado a monarquia e os que gravitam à volta do poder. A ironia
em torno da Espanha e do seu povo não poupa os pais que não ligam a
nada da política, para quem os interesses não vão além dos
programas de culinária na televisão (o pai) ou o acompanhar todos
os detalhes da vida de Julio Iglesias (a mãe).
O
autor/narrador expõe-se, revela-nos acontecimentos marcantes da sua
vida e nomeia os membros da sua família à medida que eles vão
surgindo no livro com nomes de grandes mestres da música. O pai é
Bach, a mãe é a Wagner, Vivaldi e Brahms são os nomes que dá aos
filhos, Monteverdi e Händel são os tios maternos e Rachmaninov o
tio irmão do pai, a viver na Galiza. Até ao rei ele dá um nome –
Beethoven – o rei dos músicos. E depois a figura sinistra do padre
G. que ele recorda como alguém que é o Mal, alguém cujo toque
provocou nele um apagão, desde sempre associado a um sentimento de
medo, o medo típico da vítima que se acha culpada do mal que lhe
provocaram.
O pai – Johann
Sebastian – é constantemente recordado como uma pessoa boa que
atraía os desventurados. São muitas as marcas, anotações e
sublinhados que fiz, mas deixo aqui apenas alguns em torno da figura
do pai.
“O meu pai
foi um artista do silêncio.” “A medicina ainda não é
inteligente, é ainda uma simples prática, simples constatação de
factos. Tem de descobrir a beleza e a salganhada imaterial de um
tumor cancerígeno, porque num tumor cancerígeno também está a
vontade de vida do corpo do homem que o traz dentro de si. É essa a
razão de o meu pai ter escolhido o silêncio. Não havia nada a
dizer. A medicina estava vazia, a religião nunca existiu, e ele já
abandonara o seu carro. Os seres humanos já estavam na
invisibilidade, não tinha nada para nos dizer” (pág. 70)
“Na
realidade, eu nunca soube quem era o meu pai. Foi o ser mais tímido,
enigmático, silencioso e elegante que conheci na minha vida. Quem
foi? Não me dizendo quem era, o meu pai estava a forjar este livro.”
(pág. 217)
“Éramos
então pai e filho, de uma forma que nunca mais voltaríamos a ser.
Jogávamos
muito bem.
Formávamos um
único ser, fundíamo-nos.
Éramos amor.
Mas nunca
falámos disso, nunca o dissemos.
Nunca.”
(págs. 264 e 265)
Sobre a mãe –
a Wagner – limito-me a fazer esta transcrição: “Como sou
parecido com a minha mãe, absolutamente igual.” (pág. 360)
Muito próximo do
fim,
“O mês de
Junho aparecia por Barbastro como um deus a iluminar a vida das
pessoas.
Era o paraíso.
Foi o meu paraíso. Foram eles o meu paraíso, o meu pai e a minha
mãe, como gostei deles, como fomos felizes e como nos desmoronámos.
Que bela foi a nossa vida em conjunto, e tudo está perdido agora. E
parece impossível.” (pág. 235)
Manuel Vilas tem
uma produção poética intensa e a sua escrita é muita rica, mas
simples, sem artifícios. Este romance autobiográfico surpreende
pela escrita, mas não posso deixar de aqui referir o último
capítulo (157) que se refere à noite da sua concepção quando os
pais eram uns jovens a estrear a sua vida conjugal e um prédio em
que tudo era novo, em comparação com a decrepitude do mesmo prédio
passados cinquenta anos. É um capítulo simplesmente belíssimo.
O epílogo – A família e a História – é como que a síntese,
em poesia, das cerca de quatrocentas páginas que constituem o livro.
Termino, voltando
ao princípio e ao icónico canto da grande Violeta Parra
“ Obrigada
à vida, que me deu tanto. Deu-me o riso e deu-me o pranto. …”
16 de Junho de
2019
Almerinda Bento
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