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quinta-feira, 29 de junho de 2017

A Escolha do Jorge: "A Louca da Casa"

     
Ensaio, romance ou autobiografia? É a questão que se impõe no decurso da leitura de “A Louca da Casa” de Rosa Montero (n. 1951). Um misto dos três géneros é possivelmente a melhor resposta na medida em que na obra em questão é difícil estabelecer os limites e as fronteiras de cada um.
      Numa obra bem conseguida e profundamente intimista, Rosa Montero, remete o leitor para os misteriosos e insondáveis caminhos da imaginação e da criatividade com que o escritor se debate ao longo da vida. A esta constante presença, Rosa Montero atribui-lhe a metáfora “A Louca da Casa”. Num trabalho solitário, o escritor debate-se com a presença de inúmeros personagens que pululam a sua imaginação e que, a todo o custo, se debatem em ser transpostos para o mundo da escrita, chegando, dessa forma, ao universo dos leitores, conquistando em tantas histórias que conhecemos, legiões de admiradores que atravessam o próprio rio do tempo, perdurando, personagens e escritores, como fazendo parte de uma cultura específica de um país ou, em tantos casos, extravasando fronteiras, tornando-se universais.
      Rosa Montero recorre também a muitos exemplos de escritores conhecidos,
enriquecendo esta narrativa com aspectos particulares da vida de alguns escritores, nomeadamente Italo Calvino, Goethe, Tolstoi, Robert Walser, Rimbaud, entre outros. Mas são precisamente as páginas dedicadas ao suíço Robert Walser e ao francês Rimbaud, as mais impressionantes, na minha opinião. No primeiro caso, com Robert Walser, por se tratar de um escritor que não conheceu o sucesso e o reconhecimento em vida e, no segundo caso, com Rimbaud, o jovem, cuja veia de inspiração estava de tal modo ao rubro que tudo o que publicou foi na adolescência e no final desta.
      Rosa Montero humaniza todos estes escritores que, na maior parte dos casos, os leitores apenas conhecem as suas obras e pouco mais. A escritora ao partilhar referências das suas biografias com alusão à literatura e seus contributos, devolve-lhes, em certa medida, a ideia de que estes indivíduos também foram seres humanos com todas as suas circunstâncias, desejos, ambições, fraquezas e devaneios.
      A este respeito, e no decurso do desfile desta gala de escritores apresentados por Rosa Montero, a escritora integra também inúmeros aspectos e episódios da sua vida pessoal, desde a sua juventude até ao presente. Uma clara exposição, é certo, dado que a escritora viveu os tempos do franquismo e a passagem à vida democrática, as tendências que chegavam de fora a um país fortemente vigiado, assim como as mudanças na mentalidade e nos comportamentos da sociedade espanhola pós-Franco.
      Escrever é um acto de amor, isso é sabido. O escritor tem necessidade de escrever primeiro para si, mais não seja porque todos os personagens que habitam a sua imaginação ocupam de forma permanente o palco da sua mente, fazendo uma espécie de fila indiana para surgirem nas obras passadas a escrito. Mas este acto de amor, o escrever, remete também para os amores e desamores que, não raras vezes, reflectem também o próprio estado de espírito do escritor e a sua ansiedade, angústia, ilusão, experiências amorosas deste.
      A este respeito, Rosa Montero presenteia o leitor com um episódio da sua juventude, quando esta se apaixonou e se envolveu com um conhecido actor de cinema. Não só o leitor fica surpreendido com a revelação da escritora, mas próximo do final da obra, rapidamente percebe que Rosa Montero lhe troca as voltas apresentando-lhe, essa mesma história, a desse envolvimento e paixão por esse actor de cinema, não a história real, mas como a mesma verdadeiramente aconteceu ou, nunca fiando no escritor, como a autora gostaria que essa mesma história tivesse acontecido.
      É neste misto de realidade versus ficção que a verdade dos factos (ou pelo menos de alguns factos) teve lugar. A verdade, aquela que aconteceu mesmo situar-se-á algures, entre a realidade e a ficção, um meio-termo aristotélico, quiçá.
Mas mais do que saber e compreender a realidade dos factos, é precisamente quando o leitor percebe que foi “apanhado” pelo escritor e, mais, de que isso fez parte de um plano projectado, arquitectado, muito tempo antes, quando ainda esta obra se encontrava literalmente na “louca da casa”, que o leitor se deleita com esta que é uma das delícias da literatura, que é o gozo que a leitura proporciona e, mais, o de ser apanhado, conquistado, como num amor, uma paixão em que não se vê nada à frente ainda que, tantas vezes não passe de uma ilusão. Como na literatura, a capacidade de construir ilusões e de conquistar leitores.
      Uma obra notável, inspiradora, desafiante e profundamente humana!

Excertos:
“(…) Falar de literatura é falar da vida; da vida própria e da vida dos outros, da felicidade e da dor. E é também falar do amor, porque a paixão é a maior invenção das nossas existências inventadas, a sombra de uma sombra, o adormecido que sonha que está a sonhar. E no fundo de tudo, para além das nossas fantasmagorias e dos nossos delírios, momentaneamente detida por este punhado de palavras, tal como o dique de areia de uma criança detém as ondas na praia, espreita a Morte, tão real, revelando as suas orelhas amarelas.” (pp. 12-13)

“Regressamos assim à imaginação. A essa louca às vezes fascinante e às vezes furiosa que mora no sótão. Ser romancista é conviver harmoniosamente com a louca de cima. É não ter medo de visitar todos os mundos possíveis e alguns impossíveis. Tenho outra teoria (tenho muitas, resultado da laboração frenética da minha razão), segundo a qual os narradores são seres mais dissociados ou talvez mais conscientes da dissociação do que os restantes. Isto é, sabemos que dentro de nós somos muitos.” (p. 23)

“Estou convencida de que, à noite, quando adormecemos e começamos a sonhar, na realidade entramos noutra vida, numa existência paralela que preserva a sua própria memória, a sua continuidade, a sua causalidade arrevesada. Por exemplo, eu sei que no mundo das minhas noites e dos meus sonhos tenho um irmão que se chama Pascual, embora nesta vida real não tenha outra irmã além de Martina.” (p. 96)

“O escritor, tal como qualquer outro artista, tenta dar uma vista de olhos para fora das fronteiras dos seus conhecimentos, da sua cultura, das convenções sociais; tenta explorar aquilo que é disforme e ilimitado e, esse território desconhecido assemelha-se muito à loucura. Em criança, estamos todos loucos; isto é, estamos todos possuídos por uma imaginação indomesticada e vivemos numa zona crepuscular da realidade na qual tudo é possível. Educar uma criança implica limitar o seu campo visual, diminuir o seu mundo e dar-lhe uma forma determinada, para que se adapte às normas específicas de cada cultura.” (p. 155)

Texto da autoria de Jorge Navarro

1 comentário:

  1. Este livro desperta-me curiosidade desde a sua publicação :)

    http://barbarareviewsbooks.blogspot.com/

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