Nuno Costa Santos (n. 1974) publicou o seu primeiro romance no início deste
ano sob o título “Céu Nublado com Boas Abertas” através da editora Quetzal.
Partindo de um dado específico familiar, uma fotografia dos seus avós maternos, o autor trilha um caminho que em tantos aspectos se assemelha às obras do alemão W. G. Sebald. A fotografia constitui a premissa, senão a base de sustentação, de todo o romance que evolui em duas partes alternadamente, duas narrativas que se fundem aos poucos numa só.
Ficamos a conhecer a história dos avós do autor ligados à ilha de S. Miguel, nos Açores, terra natal também do autor e a sua forte ligação à ilha vendo pelos sucessivos pensamentos e divagações fruto das suas caminhadas e passeios pela ilha. O regresso do autor à ilha prende-se com a busca do passado dos seus avós e, consequentemente, da necessidade de conhecer e compreender a sua própria história. A doença marcou o seu avô no início do seu casamento afastando-o da ilha durante um exílio de seis anos no continente para sucessivos tratamentos e operações, assim como, os longos períodos de
descanso no Caramulo graças à pureza do ar daquela região. Poucos foram os encontros do jovem casal durante este longo exílio, mas a perseverança, o amor e a fé contribuíram de forma decisiva para decisões sérias a serem tomadas pelo avô, além de terem constituído uma forma de alento nos momentos mais tristes.
Fruto do amor deste casal, nasce Maria Cristina que virá a ser a mãe do próprio autor.
O autor regressa aos Fenais da Luz onde os seus avós viviam, especificamente no lugar dos Aflitos, e que graças às suas descrições, o leitor pode compreender como é viver numa ilha daquele arquipélago.
A par do livro escrito pelo seu avô que ficamos a conhecer certas passagens - uma obra que se circunscreve unicamente ao período em que o seu avô esteve no continente no decurso da sua doença e sucessivos tratamentos -, Nuno Costa Santos também confronta o leitor com o “modus vivendi” da ilha de S. Miguel nos dias de hoje através de situações tão características quanto específicas de alguém que vive ou que viveu na ilha ou mesmo no arquipélago.
Esta passagem do autor por S. Miguel leva-nos a questionar os limites da própria literatura na medida em que a ficção pode misturar-se e até confundir-se com a realidade. A pobreza de algumas das pessoas com quem interage, traficantes de droga, prostitutas, presidiários, personagens estranhos e até caricatos, são todos personagens, de carne e osso, ou talvez não, que o leitor vai conhecer ao longo de “Céu Nublado com Boas Abertas”.
Nunca sabemos muito bem qual é o objectivo desta obra que, à semelhança dos nevoeiros frequentes nos Açores que apelidam o arquipélago de “ilhas de bruma”, constituem uma espécie de mito, uma forma também por si mesma de contar uma história, desocultando assim todo um conjunto de “sentimentos-ilhéus” que contribuem para a compreensão e concretização da obra.
Em todo o caso, percebe-se da importância da ilha na vida do autor. “Céu Nublado com Boas Abertas” é um livro interior, pejado de pensamentos, deambulações da mente, emoções e sentimentos que não poucas vezes nos deixa num estado de melancolia.
Perguntamo-nos várias vezes ao longo da obra qual é o sentido ou a tese da mesma quando a narrativa ou as duas narrativas evoluem de forma entrelaçada e acabamos por compreender que “Céu Nublado com Boas Abertas” é isso mesmo, um conjunto de histórias que permite ao autor reencontrar-se consigo e com a sua família tendo a ilha como seu refúgio e ponto de equilíbrio e de inspiração também e, neste caso em concreto, esta obra confirma o autor como um perfeito contador de histórias.
De todos as experiências e histórias contadas por Nuno Costa Santos neste seu romance, destacaria duas que se apresentam de uma forma divertida, mostrando a adaptação dos Açores à modernidade, mantendo para todos os efeitos, o rigor das tradições e os seus rituais, como por exemplo um imigrante chinês ser o mordomo da Festa do Espírito Santo numa das freguesias da ilha. Mas também um visitante da ilha que apresenta tanto de sério como de lunático e, perante casos assim, o melhor é dar um pouco de conversa para se ficar a saber que a visita à ilha de S. Miguel surge na sequência do cumprimento de um desejo de Franz Kafka e, a partir daí, surgem as histórias mais mirabolantes imaginando Franz Kafka a residir em Ponta Delgada e a trabalhar numa empresa de transitários na Rua dos Mercadores ou dedicando-se unicamente à escrita, “A Metamorfose” rezaria da seguinte forma: “Quando Gregos Samsa despertou, certa manhã, de um sonho agitado viu que se transformara, durante o sono, numa espécie monstruosa de medusa.” (p. 191)
Excerto:
“Entra a voz do locutor:
- Temos connosco o senhor Zhang. O senhor Zhang é o primeiro mordomo do Espírito Santo originário da China. Está bem-disposto, senhor Zhang?
- Estou, estou. Boa tarde a todos.
Um chinês que fala num português seguro.
- Então como é que tudo aconteceu? Como é que a população o elegeu mordomo das Festas do Espírito Santo?
- Fui eu que avancei com a proposta e aceitaram. Tive a ajuda do senhor Alfredo Neves, que conhece toda a gente. Ele foi o mordomo em vários anos e disse que eu sou uma pessoa de confiar. Foi importante.
- Há quanto tempo é que vive nos Açores?
- Seis anos. Seis anos e três meses.
Por detrás das palavras continua a passar a música. Os sinos e os gongos calaram-se. Só ficaram as flautas.
- Permita-me que faça o comentário. Não é habitual as comunidades chinesas interagirem muito com as comunidades locais. Como é que começou a contactar com as pessoas da terra?
- Com naturalidade.
Silêncio no estúdio. Apenas a música continua a passar, enquadramento sonoro entre o misterioso, o bizarro e o divertido.
- Pode explicar um pouco melhor?
- A minha mulher gosta de viver cá. Os meus filhos estão na escola da freguesia. Todos os anos participamos nas festas do Espírito Santo e achei que podia contribuir.
- Posso perguntar-lhe se é católico?
Ouve-se um riso, presumo que do senhor Zhang.
- Sou confucionista. Mas acho que os católicos estão muito bem nas festas do Espírito Sa…
- Desculpe senhor Zhang. Vamos ter de interromper – diz, nervoso, o locutor. – Recebemos uma notícia importante para toda a população. O traficante Étienne Bouchiére conseguiu evadir-se do Estabelecimento Prisional de Ponta Delgada e anda a monte pela ilha. Não se sabe ao certo como é que tudo aconteceu, mas vamos apurar os factos junto das autoridades.
Desligo o rádio. Demasiada informação, demasiadas ocorrências, demasiadas nacionalidades. Acabo de sobreviver a mais um ataque de asma e quero dormir.” (pp. 118-119)
Texto da autoria de Jorge Navarro
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