Publicado inicialmente em 1995, “O Palácio do Riso” é um romance que tem como pano de fundo a ditadura militar de Pinochet, especificamente, a Villa Grimaldi, que foi uma das casas de tortura mais conhecidas durante o período compreendido entre 1973 e 1990 tendo recebido o epíteto de “o palácio do riso”.
A memória exerce o papel fundamental nesta obra complexa de Germán Marín que procura reconstituir as peças do puzzle da vida do narrador que ao descrever aspectos marcantes da sua vida vai construindo assim um passado histórico comum a milhões de cidadãos chilenos.
Aparentemente simples, a narrativa conta-nos o regresso de um exilado político que, ao passar junto à antiga Villa Grimaldi, recorda com certa nostalgia os tempos áureos da mansão que antes de 1973 pertencera a um antigo colega seu de escola, Antonio, com quem privou durante os primeiros anos da sua adolescência. Conheceu o fausto da mansão, as mobílias, os jardins, a piscina e a família de Antonio, recordando assim momentos ternos e doces associados a uma adolescência feliz que se guarda com saudade.
A narrativa avança e o leitor é tolhido pela doçura da escrita de Germán Marín na medida em que a nostalgia de outros tempos também é despertada, porém, aqui e acolá, o narrador dá-nos conta das mudanças da Villa Grimaldi e a sua transformação num dos mais de mil centros de detenção e de tortura no período da ditadura militar no Chile. O leitor que até dado momento se encontrava em estado de graça, rapidamente é confrontado com descrições atrozes e repugnantes face a situações específicas de tortura posta em prática pelos agentes da DINA, a polícia política do país, em relação àqueles que considerava subversivos e, por isso, perigosos para o sistema e para o país.
“A casa que eu deificava no início da adolescência, quando Antonio me convidava, tinha caído numa degradação absoluta, transformada agora num antro de dor onde rivalizavam os agentes desta prisão secreta, montados nos costados das vítimas.” (p. 112)
Entre detenções, torturas e assassinatos, foram milhares as pessoas que desapareceram durante a ditadura militar em detrimento de um país que se pretendia limpo de inimigos e de pessoas consideradas perigosas. E para cumprir esse objectivo, a melhor forma seria cortar o mal pela raiz sem hesitações. “Limpar o país era doloroso, mas, como a História demonstrava, não havia anestesia para isso. Só se podia amputar a quente.” (p. 109)
Num país que mergulhou no medo da repressão, em que cada um é polícia dos seus vizinhos e familiares, não é difícil que acabe por vir a cair nas malhas da polícia política passando ou não pelo processo completo de detenção, correcção (tortura) e, quiçá, morte com desaparecimento do corpo.
“O medo causava naquela época um enorme desassossego entre as pessoas, o que fazia aumentar as apreensões que se viviam diariamente, ainda que a delação, encorajada a partir de cima, fosse moeda corrente.” (p. 85)
A dado momento, a narrativa adquire um tom agressivo à medida que o narrador procura incessantemente Monica, uma antiga namorada do final da sua adolescência, e que para sempre marcou a sua vida associando-a à ideia de amor da sua vida. Porém, desconhece se Monica terá caído nas malhas da polícia política ou se se terá associado a ela devido a certos desvios no agir e a histórias mal contadas, permanecendo, dessa forma, a dúvida até ao final da narrativa.
Mas esse tom agressivo, lacónico, e que não poupa nas palavras ao leitor, sendo certeiro nas resoluções tomadas para com os detidos, ficamos a saber mais alguns dos métodos de tortura levados a cabo no “palácio do riso” através de María del Carmen, uma antiga funcionária da Villa Grimaldi durante a ditadura militar, confessando-se então arrependida dos seus actos proclamando com frequência que “Deus é injusto” e vestindo-se como um anjo sempre que saía à rua. Segundo María del Carmen referia-se aos detidos como “os desgraçados não mereciam viver no erro das suas ideias” (p.119) e assim, se por um lado mostrava arrependimento dos seus actos, de outra forma confirmava que não havia outra forma de sair da Villa Grimaldi a não ser pela via da verdade e, deste modo, como forma de alertar a consciência das mulheres detidas “tinha por hábito, a fim de as desanimar, obrigar as novas prisioneiras a ver-se ao espelho, depois de lhes tirar a venda; vê-te pela última vez, porque nunca mais te verás assim, dizia-lhes.” (p. 106)
A consolidação das detenções pela via das sucessivas torturas na Villa Grimaldi é comparada a um processo de animalização dos detidos tornando os prisioneiros em animais inofensivos, sendo a forma como se expressava a vitória do sistema político e militar face aos indivíduos subversivos, inimigos do Estado, traduzindo-se assim no seu aniquilamento.
“(…) Muitos dos detidos sofriam um processo de animalização. Os rostos cada vez mais pálidos e mortiços começavam a adoptar os traços fisionómicos de diversos exemplares zoológicos – lagartos, cães, carneiros.” (p. 121) “(…) A vitória não consistia necessariamente em provocar a morte do outro, mas em obter a satisfação do seu aniquilamento, transformando-o num animal inofensivo e, sobretudo, dócil e mudo.” (p. 123)
“O Palácio do Riso” apresenta-se assim como a ponte entre a literatura e a História recente do Chile na medida em que havendo ainda tanto por se fazer em matéria da História, numa época em que o passado recente dos chilenos continua a ser um trauma para tantas famílias vítimas da ditadura militar, a literatura ocupa esse espaço vazio desocultando (ou revelando) factos históricos ignominiosos transversais a todo um país e a uma sociedade.
Texto da autoria de Jorge Navarro
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