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quinta-feira, 7 de abril de 2016

A Escolha do Jorge: O Meças

"O Meças" é o mais recente romance de J. Rentes de Carvalho (n. 1930) cuja narrativa alude para a tragédia grega, em específico o "Édipo Rei" ainda que com contornos um pouco diferentes.
Passado algures na região do Sabor tendo como pano de fundo os concelhos de Foz Coa e Moncorvo pelas descrições ao longo da obra, "O Meças" retrata um Portugal longe dos círculos urbanos em que as regras de convivência social e o próprio meio económico e até cultural nada têm que ver com os grandes centros urbanos. Num mundo fechado sobre si próprio, cada uma destas comunidades tende a sobreviver como pode tanto pelo relevo acentuado que conduz ao isolamento das localidades, mas também o próprio clima que apresenta temperaturas extremas quando comparadas com outras regiões do país.
As dificuldades económicas que sempre se fizeram sentir na região contribuíram para a debandada de muitas pessoas rumo a outras partes do país ou do estrangeiro na tentativa de melhorar as condições de vida, mas também, essas mesmas dificuldades económicas e a baixa escolaridade fomentaram desde cedo uma maior dependência das classes mais baixas em detrimento daqueles que possuem terras e que consequentemente fomentam algum emprego. A vantagem económica de uma minoria confunde-se não poucas vezes com o exercício de força sobre os mais fracos e, por isso, mais desprotegidos, para lá das relações laborais, entrando tantas vezes em meandros complexos gerando relações sociais tensas entre patrão-trabalhador que rapidamente resvala na situação literal de opressor-oprimido em que um precisa do outro para lá da simples questão laboral.
"O Meças" retrata-nos assim um país a duas velocidades, revelando-nos um mundo obscuro, tenso, cruel, pejado de violência e maldade. "O Meças" pode ser considerado em certa medida como a apologia da maldade sem nenhuma razão aparente, apenas porque sim.
Em termos da narrativa em si, "O Meças" é a alcunha de António Roque, também conhecido por Antoninho ou Antolinho. Temido por uns e respeitado por outros, "O Meças" sempre manifestou um comportamento violento na relação com os outros, mesmo no próprio seio familiar cujas descrições de violência doméstica são verdadeiramente atrozes, não esquecendo a forma como o autor dos atos as encara como normais. A relação com o filho Abel não prima igualmente por dias felizes. Na história da literatura devem ser poucos os pais que odeiam de forma feroz, desde as entranhas, o próprio filho.
Emigrante durante alguns anos na Alemanha, "O Meças" regressa a Portugal, à região que o viu nascer, mas sente-se desenquadrado, embora ele próprio seja o protótipo da desadequação em pessoa. Tendo o filho e a nora a viverem consigo por estes se encontrarem desempregados, "O Meças" chega a forçar a própria nora a ter relações sexuais por questões de vingança pessoal face a ela e ao próprio filho sem qualquer razão aparente.
A ideia de região calma fora dos circuitos urbanos contrasta com estes núcleos de violência inusitada incompreensível que também nos mostra este lado oculto, negro de Portugal.
Mas nestas histórias de contornos clássicos há sempre uma voz inclemente do passado que vem atormentar o presente como que impondo um ajuste de contas. A história termina, contudo, num ‘stand by’ porque um dos personagens considera que ainda não é oportuno (ou por falta de coragem) revelar aquele pequeno quê que marca toda a diferença na vida de uma pessoa (e de uma família). Assim, a satisfação em ter vingado a irmã matando o seu violador, um dos grandes senhores da terra contrasta com a inconsciência e até ingenuidade da sua situação e até identidade.
J. Rentes de Carvalho consegue uma vez mais remeter-nos para uma realidade pouco ou nada conhecida deixando o leitor perturbado face a um tamanho grau de violência física e psicológica. Esta mesma violência reflete-se de igual modo na linguagem utilizada pelos personagens, uma linguagem que reflete todo o meio socioeconómico e cultural onde a narrativa decorre, além de todo o quadro mental que transpira.

Excertos:

"Mas quem me garante a certeza do que me lembro, do que doeu, dói ainda? Foi assim? Não será a minha maneira de procurar explicação para o que, criança, não abarcava, julguei realidade e ficou?
(...)
Terá sido assim? Será que enegreço a aflição do abandono para justificar a raiva que em mim foi aumentando e o inconsciente desejo de vingança?
(...)
Mal chegado ainda, e lugares, memórias, gente, as palavras, tudo me parece de um tempo estranho num país que nunca foi, tão de raiz tenho a vontade de eliminar, reduzir a nada, pôr-me a salvo dos fantasmas que aqui me atormentam."
(pp. 70-73)

"Porquê, mas porquê, o enxovalho, a vontade de trair o filho, abusar da rapariga, ver-se a si próprio um bandalho? De que fundo sobe o desejo de humilhar? Porquê estes dois, que nem defender se podem?(pp. 116)

Texto da autoria de Jorge Navarro

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