São várias as obras que já tive oportunidade de ler do multifacetado Pedro Eiras que se tem aventurado no mundo das letras através da publicação na área da ficção, teatro e ensaio. Das várias obras que li do autor, talvez seja correto afirmar que há um Pedro Eiras antes e depois da edição de "Bach" (2014). Esta obra constituiu um ponto decisivo na carreira do autor, não só demarcando-se das demais obras publicadas (ainda que estejam no rumo para chegar a "Bach"), mas também pelo estilo que incutiu desde então, conferindo um discurso bastante intimista capaz de interagir com o leitor tanto do ponto de vista espiritual, como ao nível intelectual, na medida em que o leitor ganha espaço para questionar, sentir, procurar sentidos, rumos a seguir, encontrando-se consigo próprio para novamente se voltar a perder.
Aproveito, deste modo, a oportunidade para recuperar uma passagem do texto que tive oportunidade de publicar neste mesmo blog aquando da edição de "Bach", em 2014: Ler este "Bach" é falhar constantemente. "Falhamos ainda mais ao tentarmos escrever sobre o livro, sobre "Bach" que tanto se nos mostra como se esconde, dificultando-nos a vida, naquele momento. É nesses momentos de dúvida e de incerteza que nos tornamos humildes ao sentirmo-nos esmagados com a beleza da obra, pois é nesses momentos que vislumbramos o entendimento de qualquer coisa, de diferente, inclassificável, tornando-se, pois, uma experiência estética e intelectual deveras estimulante."
É esta experiência estética e intelectual presente em "Bach" que Pedro Eiras conseguiu transferir para o seu mais recente livro "Cartas Reencontradas de Fernando Pessoa a Mário de Sá-Carneiro", confirmando, assim, o ponto de viragem no estilo e na linguagem intimista capaz de determinar as duas fases do seu percurso enquanto escritor.
Estas "Cartas Reencontradas" correspondem às cartas de Fernando Pessoa dirigidas a Mário de Sá-Carneiro, entre julho de 1915 e abril de 1916, encontradas nas águas-furtadas do Hôtel des Artistes, em Paris, cidade onde faleceu Mário de Sá-Carneiro. Ficção? Ou Realidade? É certo e legítimo que o leitor questione a situação em si e a veracidade das cartas antes mesmo de iniciar a leitura das mesmas. Parafraseando Fernando Pessoa numa das "Cartas Reencontradas", "Escrever é, pois, corrigir e esquecer, por um fingimento verdadeiro, a verdade falsa." (p. 107) Porém, à medida que o leitor vai lendo a compilação das cartas, as questões, as dúvidas, vão-se esfumando caindo mesmo no esquecimento, sendo então levado pelo caráter intimista que assumem, trazendo luz sobre a Lisboa de há um século tendo como pano de fundo a instabilidade política da 1ª República, o início da 1ª Guerra Mundial e ainda os dilemas e divergências de opinião entre os vários elementos que fizeram parte da "Geração d’Orpheu", nomeadamente o próprio Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros e Santa-Rita Pintor.
Estes nomes fervilhavam em ideias que se contagiavam entre si graças à influência das correntes vanguardistas europeias surgindo, deste modo, a necessidade de publicar como forma de transmissão de um quadro de valores sob a égide da revista trimestral de literatura "Orpheu" que se pretendia trimestral, mas que conheceu apenas a publicação de dois números correspondentes aos dois primeiros trimestres de 1915.
Segundo Fernando Pessoa, a revista ""Orpheu" (…) pertence a outra ordem da existência, que nos impõe a sua vontade por símbolos que não podemos decifrar." (p. 55) Mais adiante, o poeta refere "(…) Creio deveras que haver "Orpheu" é um mistério que transtorna e desloca, espiritualmente, o centro do universo, e que as almas são outras, por nascerem sob o selo oculto da nossa revista." (p. 119)
O que esta "Geração d’Orpheu" se distingue de qualquer outro movimento ou corrente contemporânea à época, é o facto de ser constituída de "espíritos tão contrários" e "inconciliáveis" capaz de provocar a "violência" graças à força e impacto das ideias que partilham, edificando, assim, uma nova forma de arte ou uma nova forma de encarar a arte.
Para Fernando Pessoa, a publicação da revista "Orpheu" foi um marco decisivo e um ponto de viragem na cultura portuguesa do início do século XX considerando que a revista deu mesmo um passo à frente em comparação com os movimentos que marcavam a Europa sentindo, pois, a necessidade de traduzir a revista noutras línguas. "Urge muito exportar os nossos movimentos para a Europa, mostrar como o que se tem feito em Paris e noutros sítios é amplamente ultrapassado pelos autores órphicos. Reivindicação de elementar justiça, pois. Veja como Portugal, politicamente suspenso, inexiste no estrangeiro. Que recepção não teria "Orpheu", se fosse publicado em Londres ou Paris!" (p. 79)
A par do reconhecimento e deste passo em frente com a publicação da revista "Orpheu", é bem visível nas cartas a forma como Fernando Pessoa em articulação com Mário de Sá-Carneiro se demarcam da posição de Santa-Rita Pintor. Esta divergência que várias vezes assume os contornos de quezília cultural (ou filosófica?) chega a ser divertida ao longo das "Cartas Reencontradas". Neste sentido, Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro reconhecem o valor das obras de Santa-Rita Pintor, daí a importância em publicar alguns dos seus ‘hors-textes’ na revista "Orpheu", representando assim o que de melhor se faz em matéria de cubo-futurismo em Portugal e na Europa, seguindo em linha com Marinetti, o mentor do movimento futurista. Porém, os dois poetas demarcam-se de Santa-Rita Pintor por assentarem o seu pensamento no sensacionismo, sendo, pois, os precursores deste movimento segundo o qual "a única realidade da vida é a sensação. A única realidade em arte é a consciência da sensação."
Em todo o caso, Fernando Pessoa assume uma posição sensata face a Santa-Rita Pintor sem que este levante grandes questões na sequência da divergência de opinião, reconhecendo-lhe o mérito enquanto artista, afirmando numa das cartas dirigidas a Mário de Sá-Carneiro: "(…) Se não convém hostilizar a criatura, também não podemos perdê-la: o Santa Rita é útil para manter aceso o rastilho cubo-futurista, e dinamitar esta Lisboa-biombo-postiço-da-banalidade." (p. 49)
É esta Lisboa que várias vezes é retratada ao longo das cartas que vamos percebendo que se trata de uma cidade demasiado pequena para dois espíritos inquietos, dois indivíduos-mundo-sem-mundo, totalmente ‘unfit’ numa Lisboa provinciana que lhe falta alma, vigor. "Lisboa vai-se volvendo uma cidade cosmopolita, onde fundeiam navios e explodem bombas republicanas, mas sem nela acordar uma alma à medida do seu corpo físico. Como o ‘golem’ judaico, Lisboa tem a força de muitos homens, e ninguém lhe soprou o espírito com que a cumpra." (p. 128)
Ao longo das cartas enviadas a Mário de Sá-Carneiro vamos percebendo algum desapontamento, tristeza até pela dificuldade em concretizar a edição do 3º número da revista "Orpheu", no terceiro trimestre de 1915, primeiro por questões relacionadas com ‘timings’ e participantes, mas sobretudo pelas dificuldades de financiamento. Esses estados de espírito contribuem para agudizar, em certa medida, o refúgio de Fernando Pessoa em si próprio, ocultando-se no desdobramento de si mesmo, sendo, pois, várias vidas em simultâneo e todas elas verdadeiras e contrárias. Assim, a verdade revela-se, ocultando-se, deixando a realidade numa linha muito ténue entre o verdadeiro e o falso.
"Sinceridade? Antes estilo, retórica, mentira fingida, e eu a saber que são falsas as frases em que juro ser sincero, e estou descrendo agora mesmo desta frase que escrevo.
Você vê bem o tormento de eu me erguer múltiplo. (…) Com a alma embrulhada para dentro, mal consigo sair da prisão de mim. Não são as suas cartas que se perdem (…), sou eu que me descubro, de mim próprio, perdido." (p. 108)
À medida que os meses vão passando e entrando já em 1916, Fernando Pessoa aflige-se perante o desespero de Mário de Sá-Carneiro que culmina na decisão de morrer "mesmo não morrendo deveras" (p. 151). Aquilo que era interpretado como fazendo parte do movimento intelectual, concretizou-se efetivamente no dia 26 de abril de 1916.
Ficção? Ou realidade? Tendo chegado o leitor ao final das "Cartas Reencontradas", estará já completamente arrebatado com a obra direcionando a sua atenção para dois dos grandes génios da literatura portuguesa contemporânea muito para além de categorias como ficção e realidade. "Os loucos inventam o mundo que não há." (p. 50)
A publicação das "Cartas Reencontradas" de Pedro Eiras coincide com a comemoração do centenário da morte de Mário de Sá-Carneiro, constituindo, desta forma, um acontecimento editorial a ter em consideração.
Texto elaborado por Jorge Navarro
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