Não por Mia Couto ter recentemente sido galardoado com o Prémio Camões, mas porque estive recentemente em Moçambique, no distrito do Gilé, província da Zambézia, senti uma enorme necessidade de reler o livro com que há já muitos anos atrás me estreara no contacto com este autor moçambicano.
Queria confrontar a ideia da estranheza de certas personagens, dos feitiços, dos encantamentos, isto é, de um outro mundo tão diferente que me tinha sido desvendado através da escrita de Mia Couto com a vivência que tinha experienciado no contacto directo com mulheres e homens daquela região da África rural tão afastada dos confortos e do acesso a alguns direitos básicos.
Volto então ao meu exemplar amarelecido de Vozes Anoitecidas, uma edição de 1987 da «Caminho» e tento perceber melhor a escrita, a invenção das palavras, a oralidade das gentes daquele país de África, o imaginário que nos é apresentado nos diversos pequenos contos de que é feito este livro do início da carreira literária de Mia Couto. Estão lá as histórias da violência doméstica, o peso das superstições e das tradições, as sequelas da guerra civil, a graça de algumas personagens como Ascolino do Perpétuo Socorro enredado em frases iniciadas por advérbios e no álcool, a tragédia dos amores impossíveis, a desgraça que é a infertilidade num continente onde o valor social passa pelo número de filhos ou a força da natureza que os humanos não controlam. Reconheço naquela escrita uma enorme proximidade à realidade e reencontro no trabalho com a língua e na invenção das palavras o prazer de uma leitura que tinha sido gostosa e carregada de poesia.
Termino, citando o texto de abertura de Mia Couto a esta colectânea de contos Vozes Anoitecidas:
«O que mais dói na miséria é a ignorância que ela tem de si mesma. Confrontados com a ausência de tudo, os homens abstêm-se do sonho, desarmando-se do desejo de serem outros. Existe no nada essa ilusão de plenitude que faz parar a vida e anoitecer as vozes.
Estas estórias desadormeceram em mim sempre a partir de qualquer coisa acontecida de verdade mas que me foi contada como se tivesse ocorrido na outra margem do mundo. Na travessia dessa fronteira de sombra escutei vozes que vazaram o sol. Outras foram asas no meu voo de escrever. A umas e a outras dedico este desejo de contar e de inventar.”
Almerinda Bento
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