"Gosto de começar os domingos com torradas e café com leite pela manhã, o que à primeira vista pode parecer nada ter a ver com o facto de escrever contos e romances. Ontem, Elisabete, falámos desta conversa e sei que a esta hora já tomaste e serviste o pequeno-almoço e estás já a estender roupa ou a passá-la a ferro, convencida de que vou usar o que me escreveste para esta conversa "Ao domingo com…"
Olho para o texto que me enviaste e leio que o teu gosto pela escrita surgiu aos 17 anos e isso já parece ter mais a ver com o facto de termos escrito juntos o "Sob o céu de Paris", mas não me convence.
Disse ontem, na nossa apresentação em Almada, que ninguém escreve livros inteiros, mas apenas metade e que o outro meio é completado pelos leitores, e estes comem torradas nas manhãs de domingo, estendem roupa, passam a ferro e ainda usam da boa vontade e da imaginação para completar as paisagens, a figura das personagens e a intensidade das situações descritas nos livros que leem. Eu sei isso, tu sabes isso e sabem-no todos os leitores do mundo, por isso não há que escondê-lo, não somos diferentes de ninguém, apenas sofremos daquela insuficiência que nos impele a escrever e que permite (desejamos nós) ajudar a colmatar as similares insuficiências de quem necessita de ler, porque a realidade é apenas uma parte das vidas de todos nós, talvez mesmo a mais pequena; a ficção é tudo o resto e tudo o resto é enorme.
Tudo o que a realidade tem de bom é sempre pouco e não nos basta. Por isso, a natureza deu-nos capacidade de imaginar, de fantasiar, de ficcionar, que permite, depois de lavarmos o prato das torradas e a chávena do café com leite, depois de estendermos e passarmos a roupa a ferro, depois de aproveitarmos tudo o que a realidade das nossas vidas tem de bom, ainda nos sentemos e deixemos fluir de nós
paisagens, personagens e conflitos que colocamos em metades de livros que, se a tanto o nosso talento permitir, poderão vir a estimular a fantasia, a imaginação e a consciência de quem nos vier a ler, completando assim o ciclo do livro que escrevermos. Olho de novo para o texto que me enviaste e leio: «Esta história de amor vivida sob o céu de Paris com telas, tintas e cavaletes à mistura foi o resultado de folhear um velho "diário de viagem" ao som de Bach numa tarde nostálgica» e sorrio. Pois é, temos que falar do "Sob o céu de Paris"!
Temos de dizer que no nosso livro mostramos que há pintores com génio e pintores sem génio, mas também pintores com mau génio, como Picasso.
Temos de dizer que acreditamos haver artistas que criam mas também artistas que fazem criar, como a fotógrafa surrealista Dora Maar.
Temos de falar que os prazeres da vida vêm do que sentimos, do que comemos, do que bebemos, do que ouvimos e do que vemos, e que dissemos tudo isso no nosso livro. Temos que acrescentar que os
conflitos fazem parte das pessoas, de nós, dos outros, de entre nós com os outros e que isso também lá está.
Temos de terminar dizendo que escrevemos este livro para que eles (os leitores) o completem lendo e que podem começar a fazê-lo num domingo qualquer…
Elisabete Caldeira
Jorge Campião
Mais uma "conversa" interessante e que me leva a uma enorme curiosidade em relação a este livro...
ResponderEliminarParabéns!
Um romance fantástico :)
ResponderEliminarParabéns
Cátia Gomes