Diário de um Médico no Combate à Pandemia, Gustavo Carona, 2021
Passados que são 3 anos que nos vimos confrontados com uma pandemia terrível, achei interessante ler este livro da autoria de um jovem médico que ficámos a conhecer da televisão e da rádio e cujo discurso saía um pouco do registo rotineiro. O livro tem um subtítulo – A missão mais difícil da minha vida – que atesta bem a gravidade do período que vivemos enquanto não havia medicamentos nem vacina, embora este médico intensivista revele na introdução que antes da pandemia já tinha feito 13 missões humanitárias em países onde ninguém quer ir, tratados como “esgotos da humanidade” (pág. 50), tal é a adversidade da vida daqueles povos.
O livro tem dois tempos. O primeiro tem a ver com o período da 1ª vaga, 2º e 3º vagas e é um diário, como tantas pessoas fizeram nessa altura sobretudo no período em que estiveram confinadas, mas este é o diário de um médico a trabalhar em UCI, ou seja, alguém que esteve bem no olho do furacão; e depois um segundo tempo escrito no primeiro trimestre de 2021, sendo uma reflexão sobre os textos escritos ao longo da pandemia.
Gosto de ler estes livros-testemunho, que nos põem em relação com situações muito específicas e que não correspondem ao comum das nossas vidas “normais” ou “padrão”, o que quer que isso seja! Neste caso, um jovem médico que totalmente se revela, expondo os seus sentimentos, os seus medos, as suas dores espirituais e físicas. Forte e frágil, crítico e abnegado, consegue com o seu exemplo dar-nos um retrato muito fiel da dureza e muitas vezes da solidão e incompreensão de quantos aguentaram o Serviço Nacional de Saúde, como a única âncora a que nos podíamos agarrar num período de incerteza, medo, confusão e cansaço extremos.
O livro começa justamente com a intervenção que Gustavo Carona fez no dia 26 de Janeiro de 2020 numa sessão no palácio de Belém, no âmbito do Grupo de Reflexão sobre o Futuro de Portugal, quatro dias antes de a OMS ter declarado “o surto pelo coronavírus uma emergência de saúde pública de preocupação internacional, o mais alto nível de alarme”. Na sua intervenção de quatro minutos, frente a frente com o presidente da República, com o título “ A minha visão da saúde em Portugal”, referia a sua profissão como aquela “onde há mais burnout” (pág. 27) e referia “A perversão dos privados. Onde se deixa de ser doente e se passa a ser cliente.” (pág. 28). Poucos dias depois, a OMS anunciava que a doença causada pelo SARS-CoV2 seria designada por covid-19. Gustavo Carona, médico intensivista num hospital público do Norte, onde a pandemia teve um grande impacto logo na fase inicial da doença, estava longe de imaginar como os meses que se iam seguir iriam comprovar com toda a justeza aquilo que já se sentia entre os profissionais do SNS.
Ao lermos este diário relembramos o que foram aqueles meses, o que sabíamos através da comunicação social, como estava a evoluir a pandemia no nosso país e lá fora, quando ficámos todos vulneráveis a um vírus, que inicialmente desvalorizámos porque achávamos que era uma coisa lá longe na China, que não iria cá chegar. Na sua reflexão crítica sobre um ano de pandemia, Gustavo Carona escreve “As pessoas esquecem-se rápido” (pág. 268) e é bem verdade. Mas as fronteiras fecharam, as máscaras e o gel que inicialmente foram um negócio rapidamente passaram a ser rotinas, as charlatanices naturalistas e os falsos profetas pulularam, os negacionistas e os relativistas abundaram nas redes sociais e, ao mesmo tempo que se investia na ciência para a descoberta de um tratamento e uma vacina, nunca como então a ciência foi posta em causa. Sendo ele um de muitos e muitas que no SNS fizeram os impossíveis, a estranheza que era chegar ao hospital sem ninguém nas urgências, porque tudo estava focado no combate à covid, leva-o ao longo do livro a afligir-se pelas outras intervenções médicas que se adiaram, pelas cirurgias que não se fizeram e por todas as outras patologias que se “esqueceram”, ao mesmo tempo que pensava no desemprego, na saúde mental, e naqueles outros tantos países onde fizera missões humanitárias e que estavam completamente desprotegidos.).
Ao mesmo tempo que relata casos que o marcaram para a vida nas suas missões no Sudão do Sul, no Iémen e noutros países, transmite-nos o que foi esta sua experiência em Portugal, no hospital, nos primeiros contactos com doentes covid, a primeira pessoa que teve alta na sua UCI, a ternura de uma colega enfermeira a falar com uma doente de 21 anos, os telefonemas para os familiares com boas ou más notícias, as videochamadas – “As primeiras de que me lembro sabiam a Euromilhões, porque correspondiam ao ponto em que o doente já estava melhor e capaz de interagir em frente ao telefone e comunicar com o seu familiar.” (pág. 77) – os números com que éramos diariamente bombardeados em contraponto às caras, aos nomes e às histórias de vida dos doentes que trataram. Ao longo do livro, Gustavo usa repetidamente o adjectivo “bonito”, para falar do SNS, do espírito de equipa, da abnegação dos colegas que puseram os outros à frente de si e das suas famílias, dos gestos de gratidão que receberam … Quero aqui lembrar uma entrada do diário de Novembro de 2020, com o título “Ricardo Quaresma”, em que lhe agradece por ter usado tão sabiamente a sua posição de grande desportista para ajudar o esforço que o SNS e os seus profissionais estavam a usar no combate à pandemia. E com o passar do tempo veio o cansaço das pessoas, o baixar a guarda, a 2ª vaga, a primeira pessoa vacinada e a extraordinária experiência da vacinação em massa e a terrível 3ª vaga que pôs Portugal no topo do ranking dos piores.
Quem não se lembra da desumanidade que foi a morte de George Floyd? Ou o desastre imenso no porto de Beirute no Líbano, em Agosto de 2020 e o espectáculo da notícia, com consequências dramáticas para um país a necessitar de uma ajuda gigantesca. Mas passada a notícia e decorridos alguns dias, não mais se irá falar disso, porque já não é espectacular! Esta reflexão percorre todo o livro, feito por alguém que precisou de parar, de pedir ajuda psicológica, mesmo confessando que o fez tardiamente porque tinha vergonha, que sofreu burnout, dores físicas intensas que só passavam quando deitado…
Um livro em que o autor tem a humildade de confessar a sua ignorância e arrogância em certos momentos, mas em que se descobre um ser humano muito bonito, com uma dedicação inexcedível aos outros e uma paixão pela sua profissão e pelo SNS.
Longa vida, com saúde para Gustavo Carona.
6 de Julho de 2023
Almerinda Bento
Não conhecia este livro, mas gostaria de o ler.
ResponderEliminarA pandemia foi há 3 anos apenas, mas às vezes é bom lermos estes livros para avivar a memória de tempos tão duros e perigosos.
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