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terça-feira, 8 de março de 2022

A Convidada escolhe: O Atalho dos Ninhos de Aranha

O Atalho dos Ninhos de Aranha, Italo Calvino, 1947

Gosto sempre de ler um livro com um prefácio que me ajude a contextualizá-lo nas suas várias facetas. Em 1964 Italo Calvino fez um prefácio para o seu “O Atalho dos Ninhos de Aranha”de 1947. É um longo prefácio em que por várias vezes retoma a frase inicial “Este romance foi o primeiro que escrevi”. Escrito pouco depois da Libertação e da sua experiência como membro da Resistência à ocupação nazi, Calvino reflecte que o livro resulta da energia e da alegria do fim da guerra, da necessidade de verter para o papel a força da oralidade sem limites naquela época, de não querer pôr-se no papel de narrador que escreve as suas memórias de partigiano, pelo que decidiu que enfrentaria o tema “não de caras mas de esguelha. Devia ser tudo visto pelos olhos de uma criança, num ambiente de garotos e vagabundos. Inventei uma história que ficasse à margem da guerra de resistência, dos seus heroísmos e sacrifícios, mas que ao mesmo tempo nos transmitisse a sua cor, o sabor áspero, o ritmo…” Inconformista, avesso às directivas, cartilhas e imagens formatadas e normativas de conduta e militância, escolheu esse garoto – o pequeno Pin – antítese do herói socialista e do romantismo revolucionário, alguém que estilhaçasse os conceitos de herói e de consciência de classe.

O livro é dedicado a Kim – grande amigo e companheiro da Resistência de Italo Calvino – sendo que no capítulo IX a sua personalidade e características de dirigente político rigoroso e analítico são vertidas, dando um tom ideológico que corta, até certo ponto, o fio da narrativa em que Pin e os partigiani são os protagonistas. Pin é a criança que cresce de forma um tanto ou quanto selvagem, sem regras, sem amor, que mascara a sua solidão e desamparo com provocações aos mais velhos, a sua forma de entrar no mundo dos homens e de se sentir um deles. Ele quer ser acolhido pelos grandes, pelos homens da taberna, pelos partigiani, é coscuvilheiro, desvenda os segredos do bairro pobre, canta canções que os homens gostam de ouvir. Para os homens da taberna, Pin é importante porque é irmão da Morena do Beco Comprido. Para Lupo Rosso, Pin é importante porque tem uma arma, escondida num lugar único, mágico, que só ele conhece – o atalho dos ninhos de aranha – a sua única riqueza. Quando é confrontado com a possibilidade de desvendar onde fica esse atalho que leva à arma escondida, Pin hesita porque “o lugar dos ninhos de aranha é um grande segredo e é necessário que seja um verdadeiro amigo, em tudo e para tudo” (pág. 92)

Só há um homem de entre todos aqueles que olha para Pin como uma criança que precisa de carinho, ele também adulto carente. “Primo o grande, doce e cruel Primo” (pág. 211) é o único que “o leva pela mão, aquela grande mão, macia e quente como pão.” (pág. 226).

No prefácio, Italo Calvino escreve a certa altura “A Resistência representou a fusão entre paisagem e pessoas” (pág. 12) . Na minha memória, os bosques, os esconderijos, as casas abandonadas onde homens sujos se amontoam, o vale, os viveiros de cravos, os campos de rododendros, a preocupação dos homens ao encontro da coluna dos alemães: “É um dia azul como os outros, tão azul que quase faz medo, um dia com cantos de passarinhos que quase faz medo ouvir.” (pág. 189).

Um livro lindíssimo.

3 de Março de 2022

Almerinda Bento

4 comentários: