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sexta-feira, 3 de setembro de 2021

A Convidada Escolhe: "A Geração da Utopia"

A Geração da Utopia, Pepetela, 1992

Pepetela e este livro foram para mim uma revelação maravilhosa. Cada dia que passa percebemos que há tanto para descobrir e lamentamos ter conhecido alguns escritores num tempo já tão avançado da nossa idade. Mas, mesmo tarde, foi mais uma bela descoberta e mais vale tarde do que nunca.

O livro começa com “Portanto, …” e termina com “… portanto.” “Como é óbvio, não pode haver epílogo nem ponto final para uma estória que começa por portanto.” Esta frase que põe fim ao romance, aponta, em minha opinião, para o facto de que todas as desilusões pelo derrubar das nossas utopias são sempre superadas pelo devir, pela esperança da concretização dos nossos sonhos, nem que seja na geração ou nas gerações que nos seguirão e que terão como nós utopias, sonhos, tudo afinal que faz a humanidade evoluir e aspirar à felicidade. 

Esta geração da utopia que aqui nos é retratada é a geração dos jovens universitários angolanos que viviam em Lisboa na década de 60 do século passado e que conviviam, namoravam e se organizavam em torno de um ideal de independência e libertação do colonialismo. Estando longe de Angola na fase inicial da guerra, numa Lisboa insegura pela presença da polícia política que vigiava tudo e todos, os jovens angolanos e africanos vivenciaram a rejeição dos portugueses que os olhavam com suspeição, instrumentalizados pela propaganda salazarista do “Angola é nossa!”, que os encaravam como inimigos. “ Sara era branca, e portanto à partida, considerada uma boa portuguesa. Os negros e mulatos eram quase apontados a dedo, nos cafés, nos cinemas, na rua. Traziam na cara os estigmas que os denunciavam como potenciais terroristas.” Por outro lado, embora sedentos de viverem num país livre do poder colonial, viviam a contradição e o receio dos métodos da UPA que recusavam e começavam a contactar e organizar-se em movimentos novos com ideais de liberdade, justiça e igualdade. 

O romance decorre em quatro momentos diferentes. Em 1961, em Lisboa, no início da guerra colonial. Em 1972, na mata angolana, os jovens universitários angolanos que haviam fugido para Paris, são agora os guerrilheiros cansados da guerra, frustrados, divididos por querelas, tribalismo e regionalismos, pois, como diz Vítor “O tempo do romantismo morreu.”. Em 1982, terminada a guerra contra o regime colonial, os partidos digladiam-se em Angola e a grande maioria da população e os deslocados da guerra vivem miseravelmente – “… o passado de quimeras trouxe este presente absurdo”. Aníbal, cujo nome de guerra era Sábio, e que se pensava ter morrido, vive sozinho num morro junto a uma praia, vivendo do peixe que caça, regando a sua mangueira onde sente que está o espírito de Mussole e com a ideia fixa de enfrentar um polvo gigante escondido numa gruta. “Eu morri e desencantei-me” assim se confessa Aníbal, aquele que era o mais politizado do grupo da Casa dos Estudantes do Império e que se afastou da política oficial por rejeitar o oportunismo e a corrupção em que muitos dos seus antigos camaradas e amigos caíram. Finalmente, em 1991, passados 30 anos de guerra, é o tempo dos negócios, das negociatas, das ligações entre a política e os negócios. Muitos dos vícios do colonialismo surgem às mãos dos que antes lutaram contra ele e o descrédito dos políticos e da política impõem-se entre o povo. O terreno está fértil para todas as manigâncias e traficâncias, para os charlatães e profetas da felicidade, a triste saída quando o povo já não tem mais nada a que se possa agarrar.

É um livro desencantado, com uma denúncia feroz aos jogos de poder e à burocracia instalada que tudo mina, embora, como disse no início, o autor deixe em aberto a esperança na humanidade e num futuro melhor e mais justo para todos. Gostei imenso da escrita poética de Pepetela, utilizando uma linguagem sensitiva, rica nas descrições, coloquial e com regionalismos cujo significado nos remete para o glossário no fim do livro. Gostaria de assinalar cenas inesquecíveis e metafóricas como a caça do bambi fêmea grávida que resiste até ao fim e a luta contra os nossos medos mais profundos empreendida por Aníbal na cena da caça ao polvo. 

Se a primeira parte do livro, o período dos anos 60 me fazem lembrar os meus tempos de estudante universitária e da luta estudantil contra o regime opressor que existia em Portugal, o capítulo “O polvo – Abril de 1982” foi, sem dúvida, aquele que mais apreciei em todo o livro, pela força e pelas descrições de imensa beleza e realismo.

Mouriscas, 16 de Agosto de 2021

Almerinda Bento

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