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sexta-feira, 29 de março de 2019

A Escolha do Jorge: “Raparigas da Província”


“Raparigas da Província”
Edna O’Brien
(Relógio D’Água)

“«Vou estoirar com esta cidade», disse ela e falava a sério, naquela primeira noite em Dublin.” 
(p. 162)

Nascida na Irlanda em 1930 e com mais de 40 obras publicadas, Edna O’Brien é uma das mais prestigiadas escritoras de língua inglesa juntando-se a nomes como James Joyce e Frank O’Connor.
São várias as suas obras de referência, mas é com a trilogia “Country Girls – Raparigas de Província”, os seus primeiros três romances, que Edna O’Brien dá os primeiros passos no mundo das letras, tendo de imediato um impacto negativo perante a sociedade e a Igreja, na medida em que durante vários anos os seus livros foram censurados.

Edna O’Brien põe o dedo na ferida em inúmeros aspectos da sociedade irlandesa e, neste caso em concreto, reportando-se à década de 50, em que predominava o mundo rural em oposição às cidades e o peso da Igreja com a noção de pecado sempre na boca e no pensamento das pessoas e a necessidade de redenção. O retrato das pequenas comunidades com o seu típico “diz-que-diz” em que num ápice, qualquer pessoa, mas em especial as mulheres, caem nas bocas do mundo e rapidamente em desgraça em oposição a uma sociedade dominada por homens que se vingam na bebida e na violência doméstica por ser uma espécie de ‘modus vivendi’ que se instituiu ao longo dos tempos, daí tolerado e aceite pelos demais habitantes.

“Raparigas da Província” retrata assim esta dura realidade fechada sobre si própria que encara Dublin como a grande miragem, nesta oposição campo-cidade, mas também clausura versus liberdade.
Duas jovens adolescentes, Baba e Cait, ansiosas por sair da vila e das suas rotinas, acabam por frequentar um convento a fim de concluírem estudos. As rotinas duras impostas pelas religiosas transformam Baba e Cait numa espécie de balão à espera de rebentar, tentando, tudo por tudo, para serem expulsas rumo à sua emancipação em Dublin.

Baba é mais arisca, mais irreverente e a mais inconsequente das amigas, ao contrário de Cait, mais simples e fortemente ligada ao Catolicismo e às suas tradições, vivendo frequentemente com a ideia de estar a cometer algum pecado, tendo de modo permanente a imagem da sua mãe falecida como referência face à distinção entre a ideia de bem e de mal. Até os seus impulsos são mais recatados, não vá algo de mal desabar sobre a sua cabeça e sobre o seu futuro. “«Mas o que nós queremos é rapazes. Aventuras românticas. Amor e essas coisas», disse eu, desalentada. Imaginava-me debaixo de um candeeiro de rua à chuva, com o cabelo solto em desordem e os lábios em suspenso, a aguardar o milagre de um beijo. Um beijo. Nada mais. A minha imaginação não ia mais além. Receava fazê-lo. A mamã protestara com angústia ao longo daqueles anos tempestuosos. Mas os beijos eram lindos. Os beijos dele. Na boca, nas pálpebras e no pescoço, quando levantava a juba do meu cabelo.” (p. 176)

A escrita de Edna O’Brien é fluida a par de ser contagiante e electrizante. A leitura provoca uma estranha sensação de se quebrar ou rebentar algo dentro de nós no que concerne às estruturas emocionais, quer pela narrativa, sempre empolgante, mas também pela beleza da escrita que nos cativa desde a primeira à ultima página. Edna O’Brien tem um sentido de humor refinadíssimo e o recurso a metáforas é notável, sem nunca cair no grosseiro ou no banal.

“Raparigas da Província” (1960) é um romance com quase sessenta anos e para os dias que correm poderíamos dizer que não tem nada de especial, contudo, à data, a questão da mentalidade dominada pela Igreja e a pobreza das pequenas comunidades constituíam os aspectos relativamente aos quais levaram a que Edna O’Brien fosse considerada uma escritora subversiva no intuito de provocar uma revolução face à ordem social estabelecida na Irlanda, branqueando-se assim o presente e hipotecando o futuro.

A chegada de Baba e Cait a Dublin constitui, desta forma, o romper com o mundo rural, com a Igreja, com a mentalidade fechada e obtusa face ao mundo urbano, sinónimo de liberdade e um desejo imenso de se realizarem enquanto mulheres, descobrindo assim a sexualidade ainda que de uma forma muito incipiente. Com o tempo, as jovens vão compreender que a realidade nem sempre acompanha o furor dos desejos e que um certo idealismo pode trazer frustração à mistura, mas isso também faz parte do crescimento, do tornar-se adulto e do compreender a relação com o outro, mesmo quando o outro é um homem mais velho e casado. “Nós queremos viver. Beber gin. Enfiarmo-nos no banco da frente de grandes carrões e estacionar diante de grandes hotéis. Queremos ir a sítios, e não ficar aqui sentadas nesta enxovia cheia de mofo.” (p. 176)

Baba e Cait são personagens ficcionadas, mas que representam toda uma geração de jovens que se tornaram mulheres e que, com a sua determinação, conseguiram romper com os laços da tradição rumo à sua emancipação, mas também, no seu conjunto, contribuíram para o progresso e modernidade da Irlanda nas décadas seguintes.

“Raparigas da Província” funciona também como uma espécie de espelho face ao Portugal dos anos 50, com o país a viver a consolidação da ditadura que andava de mãos dadas com a Igreja que determinava todo um código de normas e condutas, fechando o país sobre si próprio, aguardando ainda por mais de duas décadas pelo grito de libertação.

Edna O’Brien continua a centrar a sua atenção e energias no papel das mulheres na sociedade contemporânea, nas desigualdades existentes e no muito que ainda há por fazer nestes campos. Exemplo disso é o seu mais recente romance “Pequenas Cadeiras Vermelhas” (2015), publicado recentemente pela Cavalo de Ferro.

Da trilogia “Country Girls – Raparigas da Província” continuam por traduzir para português “The Lonely Girl” (1962) e “Girls in their Married Bliss” (1964).

Excertos:
“«Que linda coisa! Sua porca…», disse o meu pai, aproximando-se. Estava a tentar encontrar uma palavra suficientemente má para me descrever. Tinha a mão erguida, como se fosse bater-me.
«Odeio-te», disse eu de repente e com veemência.
«Cala essa boca obscena e pestilenta», e deu-me uma bofetada terrível. Caí e bati com a cabeça na aresta do guarda-loiça, e dentro dele as chávenas chocalharam. A cara doía-me, da bofetada.
Mr Brennan correu para mim e arregaçou as mangas.
«Deixe-a em paz», disse ele, mas o meu pai estava pronto para me bater outra vez.” (p. 134)

“«Sabes, Caithleen, é uma pena muito grande. Eras inteligente na escola. Terias ido longe. Por que razão arruinaste o teu futuro?» Segurou-me na mão, ao fazer-me a pergunta.
«Não me pergunte a mim», respondi.
«Eu sei porquê», disse ele. A sua voz era calma e a mão era macia e répida. Era um homem bom e gentil.
«Pobre Cithleen, sempre foste o joguete da Baba.»
«Eu gosto da Baba, Mr Brennan. Ela é muito divertida e não faz as coisas por mal.» Era verdade.
«Ah, se pudéssemos escolher os nossos filhos», disse ele tristemente. Formou-se-me um nó na garganta, e eu sabia tudo aquilo que ele tentava dizer-me. E pareceu-me que a vida para ele era uma desilusão. Os anos passados a percorrer estradas más à noite, a atravessar campos à luz de uma lanterna para chegar até junto de um animal doente, num telheiro exposto à intempérie, tinham sido deitados fora. Mr Brennan não encontrara felicidade junto da mulher nem dos filhos. E ocorreu-me que ele gostaria de ter tido a mamã como esposa e a mim como filha. Senti que ele estava a pensar a mesma coisa.” (p. 136)

Texto da autoria de Jorge Navarro

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