Salvação
Ana Cristina Silva
2017
Este é o quinto livro de Ana Cristina Silva que leio, onde mais uma
vez a autora revela a sua mestria em analisar e transmitir-nos
estados de alma das personagens que cria. Desta vez, um escritor e o
seu sofrimento pela perda da mulher, vítima de doença. A
incapacidade de evitar-lhe a morte e de prever que a doença seria
irreversível geram nele remorso e um profundo abatimento.
Agarrando-se ao último pedido formulado pela mulher – que
escrevesse um novo romance – somos levados ao longo de quinze
meses, tempo que o narrador leva a escrever o livro, a acompanhar o
seu luto. Criando uma personagem – David Negro – e uma época –
séculos XVI e XVII em Portugal e na Europa – o escritor narrador
vai transpor para a escrita os seus sentimentos de impotência e de
perda definitiva da mulher através da personagem criada, ao mesmo
tempo em que traça um paralelo entre duas épocas da história da
humanidade em que a intolerância e o fanatismo, em nome de deus –
Cristo, Moisés ou Maomé – e das religiões, persistem de forma
feroz. Embora inicialmente seja para ele vaga e incerta a forma como
o livro irá evoluir, no entanto, a ideia do tema é clara desde o
início: Deus e os seus crimes.
David
Negro, com mais de 90 anos, a viver em Amesterdão e sentindo que a
sua vida está a chegar ao fim, escreve uma longa carta à filha que
deixou quando ela tinha nove anos, forçado a fugir de Portugal por
ocasião da perseguição aos cristãos novos pelo Santo Ofício. Não
tendo conseguido salvar a mulher, expressa nessa carta os sentimentos
de culpa, remorso e cobardia e pede à filha que o perdoe, embora
duvide que a carta que lhe está a escrever, alguma vez lhe chegue às
mãos e mesmo que a consiga escrever até ao fim, dado o seu precário
estado de saúde. Tendo passado por Paris quando as ideias de Lutero
e de Calvino geram acesos debates teológicos entre cristãos e
quando acabara de ocorrer o terrível massacre de S. Bartolomeu, em
que protestantes foram massacrados pelos soldados do rei, parte para
Hamburgo onde está instalada uma importante comunidade de cristãos
novos fugidos de Portugal. Aí, juntamente com Rodrigo de Castro,
outro médico que havia estado ao serviço do rei Filipe II de
Espanha, mas que também fora obrigado a fugir para Hamburgo, tentam,
com os parcos conhecimentos de medicina à época, responder à
terrível calamidade de peste que dizimou milhares de pessoas.
Segue-se Amesterdão, onde toma conhecimento de Uriel da Costa um
homem de pensamento livre, crítico das religiões, proscrito pela
comunidade e pelos fanáticos liderados pelo rabino. Perseguido pelos
judeus sefarditas, açoitado e humilhado publicamente, acaba por
encontrar no suicídio a única saída para o seu sofrimento moral.
Ao
mesmo tempo em que o narrador vai avançando no seu livro, o tempo
vai fazendo o seu trabalho, não apagando o desgosto, mas dando-lhe
novos contornos. “O sofrimento do luto é assim: um longo
corredor que não é possível passar a correr.” Da fase
inicial de corte e alheamento com o mundo circundante, de
desinteresse pela vida, até um dia em que ao abrir a televisão se
depara com o atentado de Paris. Atenta no discurso dos fanáticos do
Daesh, em tudo igual ao dos frades dominicanos dos autos-de-fé do
tempo de David Negro. Mas agora, quatro séculos depois, a
intolerância e o medo abrem as notícias dos telejornais e fazem
manchetes nos jornais: Paris, Nice, Istambul… em nome de um deus.
Enquanto
vai escrevendo o seu livro, o narrador apercebe-se de que o peso da
ausência da mulher deixa de ser tão presente e obsessivo e
culpabiliza-se, como se o seu luto estivesse a esmorecer e tal fosse
sinal de menos amor pela mulher, de traição à sua memória. Sofia,
a mulher morta, tinha tido a clarividência que só através de um
novo livro, o marido conseguiria sair da depressão do luto. Tal como
a longa carta de David Negro à sua filha Inês da Paz é um “livro
de memórias” e funciona como uma possível forma de quebrar uma
ausência não desejada e uma espiação por um laço que se quebrou,
este livro é afinal uma salvação para ambos: escritor e
personagem.
A
escrita como salvação. O trabalho como salvação.
Um
livro excelente, cuja leitura aconselho vivamente.
22
de fevereiro de 2019
Almerinda
Bento
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