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sexta-feira, 1 de março de 2019

A Convidada Escolhe: "Salvação"


Salvação
Ana Cristina Silva
2017
Este é o quinto livro de Ana Cristina Silva que leio, onde mais uma vez a autora revela a sua mestria em analisar e transmitir-nos estados de alma das personagens que cria. Desta vez, um escritor e o seu sofrimento pela perda da mulher, vítima de doença. A incapacidade de evitar-lhe a morte e de prever que a doença seria irreversível geram nele remorso e um profundo abatimento. Agarrando-se ao último pedido formulado pela mulher – que escrevesse um novo romance – somos levados ao longo de quinze meses, tempo que o narrador leva a escrever o livro, a acompanhar o seu luto. Criando uma personagem – David Negro – e uma época – séculos XVI e XVII em Portugal e na Europa – o escritor narrador vai transpor para a escrita os seus sentimentos de impotência e de perda definitiva da mulher através da personagem criada, ao mesmo tempo em que traça um paralelo entre duas épocas da história da humanidade em que a intolerância e o fanatismo, em nome de deus – Cristo, Moisés ou Maomé – e das religiões, persistem de forma feroz. Embora inicialmente seja para ele vaga e incerta a forma como o livro irá evoluir, no entanto, a ideia do tema é clara desde o início: Deus e os seus crimes.
David Negro, com mais de 90 anos, a viver em Amesterdão e sentindo que a sua vida está a chegar ao fim, escreve uma longa carta à filha que deixou quando ela tinha nove anos, forçado a fugir de Portugal por ocasião da perseguição aos cristãos novos pelo Santo Ofício. Não tendo conseguido salvar a mulher, expressa nessa carta os sentimentos de culpa, remorso e cobardia e pede à filha que o perdoe, embora duvide que a carta que lhe está a escrever, alguma vez lhe chegue às mãos e mesmo que a consiga escrever até ao fim, dado o seu precário estado de saúde. Tendo passado por Paris quando as ideias de Lutero e de Calvino geram acesos debates teológicos entre cristãos e quando acabara de ocorrer o terrível massacre de S. Bartolomeu, em que protestantes foram massacrados pelos soldados do rei, parte para Hamburgo onde está instalada uma importante comunidade de cristãos novos fugidos de Portugal. Aí, juntamente com Rodrigo de Castro, outro médico que havia estado ao serviço do rei Filipe II de Espanha, mas que também fora obrigado a fugir para Hamburgo, tentam, com os parcos conhecimentos de medicina à época, responder à terrível calamidade de peste que dizimou milhares de pessoas. Segue-se Amesterdão, onde toma conhecimento de Uriel da Costa um homem de pensamento livre, crítico das religiões, proscrito pela comunidade e pelos fanáticos liderados pelo rabino. Perseguido pelos judeus sefarditas, açoitado e humilhado publicamente, acaba por encontrar no suicídio a única saída para o seu sofrimento moral.
Ao mesmo tempo em que o narrador vai avançando no seu livro, o tempo vai fazendo o seu trabalho, não apagando o desgosto, mas dando-lhe novos contornos. “O sofrimento do luto é assim: um longo corredor que não é possível passar a correr.” Da fase inicial de corte e alheamento com o mundo circundante, de desinteresse pela vida, até um dia em que ao abrir a televisão se depara com o atentado de Paris. Atenta no discurso dos fanáticos do Daesh, em tudo igual ao dos frades dominicanos dos autos-de-fé do tempo de David Negro. Mas agora, quatro séculos depois, a intolerância e o medo abrem as notícias dos telejornais e fazem manchetes nos jornais: Paris, Nice, Istambul… em nome de um deus.
Enquanto vai escrevendo o seu livro, o narrador apercebe-se de que o peso da ausência da mulher deixa de ser tão presente e obsessivo e culpabiliza-se, como se o seu luto estivesse a esmorecer e tal fosse sinal de menos amor pela mulher, de traição à sua memória. Sofia, a mulher morta, tinha tido a clarividência que só através de um novo livro, o marido conseguiria sair da depressão do luto. Tal como a longa carta de David Negro à sua filha Inês da Paz é um “livro de memórias” e funciona como uma possível forma de quebrar uma ausência não desejada e uma espiação por um laço que se quebrou, este livro é afinal uma salvação para ambos: escritor e personagem.
A escrita como salvação. O trabalho como salvação.
Um livro excelente, cuja leitura aconselho vivamente.
22 de fevereiro de 2019
Almerinda Bento





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