Salvação
Ana Cristina Silva
2017
Este é o quinto livro de Ana Cristina Silva que leio, onde mais uma
vez a autora revela a sua mestria em analisar e transmitir-nos
estados de alma das personagens que cria. Desta vez, um escritor e o
seu sofrimento pela perda da mulher, vítima de doença. A
incapacidade de evitar-lhe a morte e de prever que a doença seria
irreversível geram nele remorso e um profundo abatimento.
Agarrando-se ao último pedido formulado pela mulher – que
escrevesse um novo romance – somos levados ao longo de quinze
meses, tempo que o narrador leva a escrever o livro, a acompanhar o
seu luto. Criando uma personagem – David Negro – e uma época –
séculos XVI e XVII em Portugal e na Europa – o escritor narrador
vai transpor para a escrita os seus sentimentos de impotência e de
perda definitiva da mulher através da personagem criada, ao mesmo
tempo em que traça um paralelo entre duas épocas da história da
humanidade em que a intolerância e o fanatismo, em nome de deus –
Cristo, Moisés ou Maomé – e das religiões, persistem de forma
feroz. Embora inicialmente seja para ele vaga e incerta a forma como
o livro irá evoluir, no entanto, a ideia do tema é clara desde o
início: Deus e os seus crimes.

Ao
mesmo tempo em que o narrador vai avançando no seu livro, o tempo
vai fazendo o seu trabalho, não apagando o desgosto, mas dando-lhe
novos contornos. “O sofrimento do luto é assim: um longo
corredor que não é possível passar a correr.” Da fase
inicial de corte e alheamento com o mundo circundante, de
desinteresse pela vida, até um dia em que ao abrir a televisão se
depara com o atentado de Paris. Atenta no discurso dos fanáticos do
Daesh, em tudo igual ao dos frades dominicanos dos autos-de-fé do
tempo de David Negro. Mas agora, quatro séculos depois, a
intolerância e o medo abrem as notícias dos telejornais e fazem
manchetes nos jornais: Paris, Nice, Istambul… em nome de um deus.
Enquanto
vai escrevendo o seu livro, o narrador apercebe-se de que o peso da
ausência da mulher deixa de ser tão presente e obsessivo e
culpabiliza-se, como se o seu luto estivesse a esmorecer e tal fosse
sinal de menos amor pela mulher, de traição à sua memória. Sofia,
a mulher morta, tinha tido a clarividência que só através de um
novo livro, o marido conseguiria sair da depressão do luto. Tal como
a longa carta de David Negro à sua filha Inês da Paz é um “livro
de memórias” e funciona como uma possível forma de quebrar uma
ausência não desejada e uma espiação por um laço que se quebrou,
este livro é afinal uma salvação para ambos: escritor e
personagem.
A
escrita como salvação. O trabalho como salvação.
Um
livro excelente, cuja leitura aconselho vivamente.
22
de fevereiro de 2019
Almerinda
Bento
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