Gosta deste blog? Então siga-me...

Também estamos no Facebook e Twitter

terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

A Escolha do Jorge: "Cinzas"



“Sim, tudo eram cinzas: a vida, a morte, o homem, o próprio destino que as produzia.” 
(p. 238)
A recente publicação das obras da escritora italiana Grazia Deledda (1871-1936) constituiu um dos acontecimentos literários do ano passado ainda que tenha passado de forma quase despercebida. Tratando-se da única escritora italiana a receber o Nobel de Literatura (1926), Grazia Deledda demonstrou ser uma mulher à frente do seu tempo pela forma de pensar, aspecto fortemente perceptível nos seus romances. Natural da Sardenha, a escritora é herdeira de um conjunto de valores ancestrais que tantas vezes alude à ideia homérica de sociedade que foi filtrada pelo Cristianismo. A linguagem e as tradições da ilha mediterrânica estão continuamente presentes nos seus romances, como “Depois do Divórcio” e Marianna Circa” já aqui apresentados no decurso do ano passado, como também em “Cinzas”, o romance de 1904, publicado no final do ano passado.
Nos três romances de Grazia Deledda, a mulher é sempre apresentada como figura central das narrativas. A escritora italiana desde cedo compreendeu a fragilidade da condição feminina, a sua dependência e subjugação face ao homem e não raras vezes até a sua exposição e condenação perante a sociedade que a esmaga e repudia. Nos seus romances, Grazia Ledda aborda as fragilidades da mulher, demonstrando à sociedade e ao mundo as suas capacidades, a força e tudo aquilo que é capaz de fazer por amor.
Giovanna Ledda (“Depois do Divórcio”), Marianna Circa e Oli Derios (“Cinzas”) são mulheres que dificilmente esquecemos pela sua força, temperamento, personalidade e, acima de tudo, pela sua capacidade infinita de amar.
É esta capacidade infinita de amar que deixa o leitor estupefacto perante a vida de Oli Derios ao longo do romance “Cinzas” que culmina em tragédia, perante a ideia de sacrifício na sequência de um erro cometido no passado.
A jovem Oli Derios é seduzida por um pastor de quem engravida, vendo-se depois repudiada por este e pela família. O filho, Anania, que recebe o nome do pai, é criado pela família deste enquanto Oli Derios desaparece sem deixar rasto, entregando-se a uma vida de vagabundagem e prostituição como forma de sobrevivência.
Anania cresce com o estigma de bastardo e de enjeitado e, tendo capacidade para os estudos, vai para Cagliari, na Sardenha, e depois para Roma, onde estuda Direito. Ao longo da vida, Anania vive com o desejo iminente de encontrar a sua mãe ainda que avassalado por pensamentos contraditórios, num misto de amor e de ódio, na sequência do abandono.
O percurso de Ananina dá ao leitor a ideia de várias realidades dentro da Itália, partindo da sua pequena aldeia com tradições ancestrais em oposição à cidade Cagliari e, depois disso, Roma, como a grande referência do mundo civilizado em oposição à ruralidade sarda. São estes mundos em confronto que conduzem à formação da personalidade de Anania e nunca perdendo a ideia de encontrar a sua mãe, procura nos rostos das mulheres, em Cagliari e em Roma, aquela que poderá ser a sua mãe.
Este misto de desejo e de repúdio em Anania face ao desejo de encontrar Oli Derios está presente ao longo de toda a narrativa.
“Cinzas” é um romance psicológico intenso e fortemente visual, repleto de personagens inesquecíveis e que, de alguma forma, representam um papel determinante na concretização do destino que aqui se apresenta com ecos da mitologia grega.
Numa época em que somos confrontados com a violência doméstica numa base quase diária e com tantos casos de assassinatos perpetrados contra as mulheres, é importante ler Grazia Deledda que nos seus romances tenta valorizar o papel da mulher na sociedade. Os seus romances têm um forte pendor humanista, mas também pedagógico face à necessidade de quebrar preconceitos e tabus no que respeita à sociedade que deverá olhar para homens e mulheres de forma igual.
Dos três romances de Grazia Deledda publicados até ao momento, “Cinzas” é talvez o mais intenso e também o mais dramático, na medida em que compreendemos do ponto de vista social como alguém, perante preconceitos e tradições absurdas, pode ser levado à perdição, trilhando caminhos onde não encontrará paz nem felicidade.
Não tendo nada a perder, Oli Derios, mesmo doente e sem quaisquer bens, entrega a sua vida como uma espécie de ritual exigido pelos deuses para satisfação de todos em favor da paz social como garantia de uma moral podre que não pode ser beliscada.
É imperativo descobrir Grazia Deledda! Qualquer um dos seus romances é uma pérola literária de valor inestimável, mas também pelos temas que apresenta. Passado mais de um século da edição dos três romances, percebemos que a mensagem a transmitir continua actual como nunca.
Será, pois, oportuno questionar: Quantas mais mulheres serão sacrificadas até que os deuses estejam completamente satisfeitos?
“Todos, no mundo, somos maus, meu cordeirinho, mas é preciso termos dó uns dos outros: doutra forma, ai de nós, devorávamo-nos que nem os peixes do mar.” (p. 53)

Link de acesso ao texto alusivo a “Depois do Divórcio” e “Marianna Circa”:
Texto da autoria de Jorge Navarro


Sem comentários:

Enviar um comentário