“Sim,
tudo eram cinzas: a vida, a morte, o homem, o próprio destino que as
produzia.”
(p. 238)
A
recente publicação das obras da escritora italiana Grazia Deledda
(1871-1936) constituiu um dos acontecimentos literários do ano
passado ainda que tenha passado de forma quase despercebida.
Tratando-se da única escritora italiana a receber o Nobel de
Literatura (1926), Grazia Deledda demonstrou ser uma mulher à frente
do seu tempo pela forma de pensar, aspecto fortemente perceptível
nos seus romances. Natural da Sardenha, a escritora é herdeira de um
conjunto de valores ancestrais que tantas vezes alude à ideia
homérica de sociedade que foi filtrada pelo Cristianismo. A
linguagem e as tradições da ilha mediterrânica estão
continuamente presentes nos seus romances, como “Depois do
Divórcio” e Marianna Circa” já aqui apresentados no decurso do
ano passado, como também em “Cinzas”, o romance de 1904,
publicado no final do ano passado.
Nos
três romances de Grazia Deledda, a mulher é sempre apresentada como
figura central das narrativas. A escritora italiana desde cedo
compreendeu a fragilidade da condição feminina, a sua dependência
e subjugação face ao homem e não raras vezes até a sua exposição
e condenação perante a sociedade que a esmaga e repudia. Nos seus
romances, Grazia Ledda aborda as fragilidades da mulher, demonstrando
à sociedade e ao mundo as suas capacidades, a força e tudo aquilo
que é capaz de fazer por amor.
Giovanna
Ledda (“Depois do Divórcio”), Marianna Circa e Oli Derios
(“Cinzas”)
são mulheres que dificilmente esquecemos pela sua força,
temperamento, personalidade e, acima de tudo, pela sua capacidade
infinita de amar.
É
esta capacidade infinita de amar que deixa o leitor estupefacto
perante a vida de Oli Derios ao longo do romance “Cinzas” que
culmina em tragédia, perante a ideia de sacrifício na sequência de
um erro cometido no passado.
A
jovem Oli Derios é seduzida por um pastor de quem engravida,
vendo-se depois repudiada por este e pela família. O filho, Anania,
que recebe o nome do pai, é criado pela família deste enquanto Oli
Derios desaparece sem deixar rasto, entregando-se a uma vida de
vagabundagem e prostituição como forma de sobrevivência.
Anania
cresce com o estigma de bastardo e de enjeitado e, tendo capacidade
para os estudos, vai para Cagliari, na Sardenha, e depois para Roma,
onde estuda Direito. Ao longo da vida, Anania vive com o desejo
iminente de encontrar a sua mãe ainda que avassalado por pensamentos
contraditórios, num misto de amor e de ódio, na sequência do
abandono.
O
percurso de Ananina dá ao leitor a ideia de várias realidades
dentro da Itália, partindo da sua pequena aldeia com tradições
ancestrais em oposição à cidade Cagliari e, depois disso, Roma,
como a grande referência do mundo civilizado em oposição à
ruralidade sarda. São estes mundos em confronto que conduzem à
formação da personalidade de Anania e nunca perdendo a ideia de
encontrar a sua mãe, procura nos rostos das mulheres, em Cagliari e
em Roma, aquela que poderá ser a sua mãe.
Este
misto de desejo e de repúdio em Anania face ao desejo de encontrar
Oli Derios está presente ao longo de toda a narrativa.
“Cinzas”
é um romance psicológico intenso e fortemente visual, repleto de
personagens inesquecíveis e que, de alguma forma, representam um
papel determinante na concretização do destino que aqui se
apresenta com ecos da mitologia grega.
Numa
época em que somos confrontados com a violência doméstica numa
base quase diária e com tantos casos de assassinatos perpetrados
contra as mulheres, é importante ler Grazia Deledda que nos seus
romances tenta valorizar o papel da mulher na sociedade. Os seus
romances têm um forte pendor humanista, mas também pedagógico face
à necessidade de quebrar preconceitos e tabus no que respeita à
sociedade que deverá olhar para homens e mulheres de forma igual.
Dos
três romances de Grazia Deledda publicados até ao momento, “Cinzas”
é talvez o mais intenso e também o mais dramático, na medida em
que compreendemos do ponto de vista social como alguém, perante
preconceitos e tradições absurdas, pode ser levado à perdição,
trilhando caminhos onde não encontrará paz nem felicidade.
Não
tendo nada a perder, Oli Derios, mesmo doente e sem quaisquer bens,
entrega a sua vida como uma espécie de ritual exigido pelos deuses
para satisfação de todos em favor da paz social como garantia de
uma moral podre que não pode ser beliscada.
É
imperativo descobrir Grazia Deledda! Qualquer um dos seus romances é
uma pérola literária de valor inestimável, mas também pelos temas
que apresenta. Passado mais de um século da edição dos três
romances, percebemos que a mensagem a transmitir continua actual como
nunca.
Será,
pois, oportuno questionar: Quantas mais mulheres serão sacrificadas
até que os deuses estejam completamente satisfeitos?
“Todos,
no mundo, somos maus, meu cordeirinho, mas é preciso termos dó uns
dos outros: doutra forma, ai de nós, devorávamo-nos que nem os
peixes do mar.” (p. 53)
Link
de acesso ao texto alusivo a “Depois do Divórcio” e “Marianna
Circa”:
Texto da autoria de Jorge Navarro
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