“As lágrimas toldavam-lhe os olhos: e quem sabe se ela não se comovia mais com a recordação do passado do que com a ideia do futuro eterno?”
(In “Depois do Divórcio”, p. 138)
“(…)Antes viver na certeza da dor do que na humilhação da incerteza e da esperança vã.”
(In “Marianna Sirca”, p. 169)
A Sibila Publicações é uma das mais recentes editoras que surgem em 2018 no panorama editorial português, apresentando um catálogo que aposta, atendendo aos títulos já disponíveis nas livrarias, em temas da actualidade, mas com um grande enfoque no papel da mulher na luta pela igualdade de direitos, no contexto do longo caminho que tem sido a emancipação.
Entre os vários títulos publicados, o presente texto abordará as duas obras da italiana, Grazia Deledda (1871-1936), tendo sido a segunda mulher a ser galardoada com o Nobel de Literatura, em 1926, a seguir à sueca Selma Lagerlöf, em 1909.
Grazia Deledda, natural da Sardenha, é ainda uma escritora pouco conhecida dos leitores portugueses e, no entanto, com um contributo enormíssimo, tanto no que concerne ao papel da mulher na sociedade contemporânea, ainda que, no caso específico destas duas obras, se reportem a um microcosmos social com reminiscências ancestrais que aludem a ecos da sociedade homérica, paternalista, filtrada pelo Cristianismo e que avança timidamente rumo à modernidade. A própria insularidade funciona como guardiã desses valores e cultura ancestrais que se reflectem também nos usos e costumes linguísticos, sem dúvida uma das marcas e contributos de Grazia Deledda.
“Depois do Divórcio” (1902) e “Marianna Sirca” (1915) podem, em conjunto, apresentar-se como duas faces da mesma moeda, assim como, as personagens principais, Giovanna Ledda e Marianna Sirca, poderiam ser uma e a mesma pessoa, quer pelos valores por que se debatem, pela sua força e energia que transmitem, assim como pela sua atitude perante a ideia grega de destino ao qual ninguém escapará e que a consecução dos actos se traduz na concretização desse mesmo destino.
Nas duas obras, a ideia de destino surge ligada à ideia de amor, à necessidade de que o destino só se concretiza quando existe a possibilidade de consumar o amor.
Do mesmo modo que as duas personagens femininas podem ser apresentadas como uma e a mesma pessoa, também, no caso dos dois amados, Costantino Ledda (marido) em “Depois do Divórcio” e Simone Sole (pretendente) em “Marianna Sirca” surgem em contexto análogo, o primeiro, encarcerado, vítima da acusação injusta sobre a morte de alguém, o segundo, vivendo a monte, como um bandido, acusado igualmente de crimes que não cometeu. Costantino Ledda vê-se privado da sua liberdade; Simone Sole, vive a sua liberdade, mas apartado do tecido social que o persegue.
O amor constitui o laço indiscutível de união e ligação entre estes dois casais que se vêem privados desta partilha, contudo, em “Depois do Divórcio” e “Marianna Sirca”, as duas mulheres sentem-se completamente sozinhas, abandonadas e até asfixiadas face à pressão das famílias e amigos no que respeita à ideia de, no primeiro caso, o casamento ser dissolvido por via do divórcio e, neste caso em particular, trata-se da primeira obra literária em que declaradamente este assunto é abordado, e no segundo caso, a pressão que existe para o fim da relação de modo que não chegue a ser consumada pela via do casamento.
Aparentemente, o leitor poderá ser levado a pensar que tanto Costantino Ledda como Simone Sole são apresentados como homens fracos e que vivem como sombra destas duas mulheres. A questão é que, em ambas as obras, estes dois casais são apresentados como fortemente apaixonados, casais ideais, cuja ligação aconteceu livremente, de forma espontânea, por via do amor. É o amor que está na base de ambos os romances de Grazia Ledda sendo, pois, a fonte viva não só de ambas as relações, mas também a garantia de concretização e consumação do próprio destino, termine ele com um happy end ou de forma trágica. A questão é que em ambos os romances o amor, a chama do amor é vivido e levado às últimas consequências quando todos os personagens à volta destas duas mulheres se apresentam, na verdade, como fortes oponentes e nunca como adjuvantes, o que reforça a ideia clássica de destino que está acima de qualquer ordem divina, mas sempre aliado a uma forte experiência sacrificial.
Em ambas as obras, Giovanna Era e Marianna Sirca são apresentadas, em certa medida, como a Penélope que durante, anos a fio, faz e desfaz o sudário, iludindo os seus pretendentes.
“Depois do Divórcio” e “Marianna Ledda” apresentam-se desta forma aos leitores portugueses dando assim a conhecer uma escritora italiana que é herdeira de uma riquíssima cultura por via dos povos que durante séculos ocuparam a Sardenha, traduzindo-se através do recurso a uma linguagem que também tem ecos de um passado longínquo e que, progressivamente, se tenta impor na contemporaneidade, trazendo valores ancestrais, mas também as lutas e os desafios da sociedade face à emancipação feminina, mas também ao tema da justiça no geral.
Excertos:
"— Uma profunda corrupção rói quase todos os condenados, muitos dos quais são verdadeiros criminosos cheios de vícios. Até o ar é pestilento. O homem que é tirado da sociedade, privado de liberdade, no local do cumprimento da pena enlouquece completamente, perde todo o senso moral, torna-se mentiroso, vil, feroz, corrupto até à inconsciência da corrupção." (In “Depois do Divórcio”, p. 72)
"Uma vez um caçador encontrou lá um veado com chifres de ouro. Disparou e matou-o. Ao morrer, o veado lançou um grito humano e disse: «A penitência acabou.» Julga-se que no corpo dele havia uma alma humana que se encontrava a expiar os seus pecados. Foi então erguida uma cruz." (In “Depois do Divórcio”, p. 112)
“- Marianna, Marianna! Tu falas como uma criança!
- E sou velha, pelo contrário, é o que tu queres dizer! Sim, sei-o bem; é este o meu mal.
- O teu mal tem-lo aqui – disse a criada tocando na testa com um dedo. – E depois tu estás demasiado ociosa. É preciso sermos pobres e sermos forçados ao trabalho para moer bem os dias da vida.
- E tu moeste-los bem? De que maneira? Como o jerico em volta da mó; por conta de outrem. Deixa-me moer os meus por minha conta. Ora bem, é assim que eu gosto – repetiu alto, endireitando-se e batendo com as mãos nos joelhos. – Quero conhecer a desgraça, sim! Sei tudo, não tenho os olhos vendados. Prevejo a ira dos parentes, os mexericos de todo o povo; mas isto não é nada. Ele será talvez condenado: é esta a minha mágoa. E é este o pão amargo que eu ambiciono: contanto que fiquem salvas a minha alma e a sua para a eternidade.” (In “Marianna Sirca”, pp. 109-110)
Texto da autoria de Jorge Navarro
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