“Via-se a si mesma como uma vítima da auto-ilusão, tinha-se deixado levar pela sua imaginação, no seu espírito tinha construído uma pura imagem ficcional do jovem.” (p. 61)
A escolha “A Senhora Koulas” do grego Ménis Koumandaréas (1931-2014) surge na sequência da realização da Noite da Literatura Europeia que teve lugar, em Lisboa, no passado Sábado. Trata-se de uma narrativa breve que traz ao leitor o confronto entre uma ordem social cristalizada no tempo sedimentada por anos de ditadura e a nova realidade que então espreitava, com a instauração do regime democrático, na Grécia, em 1975.
A narrativa não faz alusões a questões de ordem política, no entanto, tendo em consideração que foi escrita, em 1975, permite ao leitor perceber as tentativas de libertação da personagem principal, sobretudo, no que concerne à emancipação feminina, mais não seja como forma de viver intensamente uma relação de carácter físico em detrimento de um casamento infeliz, representando, ao mesmo tempo, todo um quadro mental da sociedade ateniense dos anos 70.
Esta novela ou este conto de Ménis Koumandaréas resume-se essencialmente a dois personagens: a senhora Koula, uma mulher casada com cerca de 40 anos, com duas filhas, um estatuto social que permitia ter uma qualidade de vida acima da média, e Mímis, um jovem universitário de 21 anos que aguardava uma bolsa de estudos para ir estudar para Inglaterra.
É no metro que diariamente a senhora Koula e Mímis se conhecem, por mero acaso, sempre no comboio das vinte horas, quando um regressava do trabalho e o outro do curso de inglês. Numa época em que não havia internet, nem smartphones, nem outro género de recursos tecnológicos, são os jogos sedutores com os olhos através do reflexo da janela, os sorrisos, a coragem para dizer olá e adeus que ganham expressão na narrativa. O leitor é rapidamente seduzido pelo jogo linguístico de Ménis Koumandaréas que nos envolve nesta relação entre uma mulher casada e um rapaz muito mais jovem.
A senhora Koula vai gradualmente fazendo o balanço da sua vida, sentindo que nada tem a perder face a um casamento sem sentido, no qual embarcou e do qual acabou por ignorar e reprimir a fonte de desejo e impulso sexual, acabando por manter o casamento e as aparências pelo facto de ter duas filhas menores. No seu entender, esta possível relação “seria como uma conspiração secreta, uma pequena revolução contra os hábitos e as convenções.” (p. 32)
Sempre muito preocupada com Mímis, a senhora Koula estabelece com este uma relação íntima durante vários meses, mas sentindo uma necessidade imensa de o proteger, como se fosse uma das suas filhas. Completamente atraída por Mímis, a senhora Koula embarca numa viagem em que se deixa seduzir pela beleza de Mímis ao ponto de misturar o coração com a racionalidade. “Sou belo, diz-me que me achas belo, suplicou-lhe como uma criança. Muito, disse a senhora Koula, mais do que devias, cada vez que te vejo nem sei onde ponho os pés; perco-me, tudo em meu redor se dissipa…” (p. 56)
E eis que a senhora Koula chega a uma encruzilhada. O que vai acontecer a partir desta relação física avassaladora nunca vivida anteriormente? Que futuro terá? O que poderá esperar?
Mímis aguarda a qualquer momento a bolsa de estudos que o levará para Inglaterra. A simples ideia da sua partida deixa a senhora Koula num premente estado de inquietação, voltando a recordar que, pouco tempo depois de se ter casado solicitou a ajuda de um amigo advogado para que, conjuntamente, tratassem do divórcio, porém, acabou por resistir quando lhe é dito “Ora Koula, estás a portar-te como uma menina de escola, ninguém é suposto estar apaixonado pelo marido ou pela mulher, o casamento é apenas uma questão de hábito, e é melhor que te acostumes à ideia; a felicidade é isso, ainda não percebeste, minha parvinha, ainda não aprendeste?” (p. 48)
Mas a diferença de idade faz a senhora Koula olhar com os olhos da razão, sentir o amor e o prazer de uma forma que os jovens ainda não têm capacidade face à necessidade permanente dos jogos da carne e será aí que a senhora Koula encarará Mímis e esta relação com outros olhos.
“Muitas vezes tinha mais prazer em esperar pelo Mímis do que propriamente o encontrar no comboio. E a visão dele, reclinado de um modo descuidado no assento, com as suas calças familiares de botões de metal, excitava-a mais do que as horas passadas na cama de casal, no quarto da cave. Deste modo, os intervalos entre os seus encontros estavam repletos de um contentamento muito mais intenso do que tudo o que ela sentia durante o tempo que passavam juntos. Expectativa e recordação, o futuro e o passado investidos pela mesma fascinante aura. Já não era capaz de desfrutar do presente. E a sua vida decorria assim, prisioneira deste ritmo quebrado e angustiado.” (pp. 62-63)
“A Senhora Koula” é, pois, uma obra que do ponto de vista político, social e o quadro mental, em tudo se aproxima da Lisboa dos anos 70. Este livro publicado no Portugal de então provocaria um certo desconforto e repúdio face ao forte conservadorismo ainda latente na forma de pensar dos portugueses. Em todo o caso, “A Senhora Koula” constitui um hino à emancipação feminina no que concerne ao amor e à sociedade em geral, tentando gerir com sensatez o coração e a razão e mesmo que o coração fale mais alto, a razão será, na medida do possível, um farol na libertação, como no encontrar-se a si mesmo ainda que o regressar a casa seja sinónimo de não chegar a lado nenhum…
“A viagem para casa parecia-lhe interminável. Uma longa e árdua Odisseia. Seria sempre assim, todas as noites, a partir de agora?” (p. 76)
Texto da autoria de Jorge Navarro
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