Este livro de Alberto Manguel,
nascido na Argentina e com cidadania canadiana tem a estrutura de uma elegia e
dez divagações e é motivado por ter sido obrigado a desmanchar e a embalar os
cerca de 35 mil livros que constituíam a sua última biblioteca. Esta situava-se
em França, num antigo celeiro anexo a um velho presbitério e a um jardim e ali
ficaria não fosse a burocracia que o forçou a partir e a enviar a sua amada
biblioteca para o Canadá, onde continua encerrada em caixotes meticulosamente
organizados e catalogados por queridos amigos que o ajudaram nessa penosa
tarefa. Tratou-se de um enterro prematuro que lhe provocou raiva e luto, porque
para o autor “se desembalar uma
biblioteca é um acto selvagem de renascimento, embalá-la é sepultá-la
ordenadamente antes do julgamento aparentemente final.” (p. 36)
São muitos os temas que
desenvolve nessas divagações, desde as suas primeiras memórias ligadas às
bibliotecas da infância nas diferentes terras onde viveu, enquanto filho de
embaixador, que para ele são “uma espécie
de autobiografia com várias camadas”. Revela-nos como os livros da infância
e da adolescência que o marcaram para a vida continuam a ter uma força enorme e
transportam consigo a presença das pessoas que lhos ofereceram. Jorge Luis
Borges é uma referência constante ao longo deste livro, não só pela sua ligação
ao escritor como à pessoa com quem trabalhou e a quem leu durante muitas horas
quando Borges já perdera a visão. Também D. Quixote de la Mancha, ou seja,
Alonso Quijano que se transforma em D. Quixote por via das suas leituras “tendo perdido os seus livros enquanto
objectos, D. Quixote reconstrói mentalmente a sua biblioteca e encontra nas
páginas recordadas a fonte de uma força renovada”. “A perda ajuda-nos a lembrar
e a perda de uma biblioteca ajuda-nos a lembrar quem verdadeiramente somos”
(p. 57).
Manguel revela um profundo
sentimento de posse relativamente aos livros e a esta sua última biblioteca e
daí o forte sentimento de perda, sendo a sua organização tão pessoal que,
podendo ser vista por outros como um caos, lhe permitia saber exactamente o
lugar de cada livro em cada uma das prateleiras. Escrever sobre este livro não
é fácil e é certamente redutor, tantos são os autores referidos e tantas as
referências literárias e porque cada divagação é um tema de análise: a
necessidade de ligação, de comunicação entre os humanos e a insatisfação
permanente; como se inicia o processo criativo e a incapacidade de através de
palavras conseguirmos transmitir completamente as nossas ideias ou intenções;
as bibliotecas que arderam ou foram destruídas e os autores que foram banidos o
que convoca o papel maldito da literatura e da arte para as ditaduras.
Ele que gosta do toque dos
livros e que é da geração que dava uma enorme importância aos dicionários
questiona-se sobre qual será o papel dos livros não virtuais para as gerações
do terceiro milénio que veneram os gameboys ou os iphones e não os livros como
objecto físico. O convite que recebeu em finais de 2015 para o cargo de
director da Biblioteca Nacional da Argentina colocou-lhe e coloca-lhe problemas
decisivos como este numa época em mudança acelerada e constante. Para além duma
perspectiva estratégica de ligação às bibliotecas regionais dentro do seu país
e de ligação a bibliotecas no estrangeiro ele, enquanto director da Biblioteca
Nacional da Argentina, tem a perspectiva de que uma biblioteca nacional seja
aberta, inclusiva, que responda aos diversos interesses e necessidades da
população, que atraia novos utilizadores e que mantenha os que já tem e isso é
uma tarefa imensa e desafiante que lhe coloca muitas questões para as quais
trabalha para responder. Para ele o ideal de biblioteca é que ela seja uma “Clínica da Alma” que funcione como “escola de empatia”.(p. 137)
Em minha opinião, esta grande
e inesperada tarefa de dirigir uma Biblioteca Nacional que já antes tinha sido
dirigida por Jorge Luis Borges, ajudou Manguel a descentrar-se da sua
biblioteca pessoal encaixotada, a fazer o luto e a focar-se numa outra
biblioteca, uma biblioteca para todos. Uma verdadeira epifania.
A terminar a última divagação,
algumas frases reveladoras: “… o
esvaziamento de uma biblioteca, por mais desolador que seja, e o embalar dos seus
livros, por mais injusto, não têm de ser encarados como uma conclusão. Há novas
ordens possíveis nas sombras, secretas mas implícitas, aparentes tão-só quando
as velhas são desmanteladas. Nada que importe pode ser verdadeiramente
substituído…” “«No meu fim está o meu começo», terá Maria Stuart, rainha da
Escócia, bordado na sua roupa durante o cativeiro. Parece-me uma divisa
adequada à minha biblioteca.” (p. 141)
1 de Junho de 2018
Almerinda Bento
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