“Fuga
Sem Fim”
Joseph Roth
(Sistema Solar)
“Neste
mundo, a pobreza constituía desumanidade, fraqueza, loucura,
cobardia e vício” (p. 132)
Uma
das alegrias em 2018 é o facto de as obras de Joseph Roth
(1894-1939) se encontrarem nas apostas de algumas editoras, tais como
“Confissão de um Assassino” (Cavalo de Ferro, em Janeiro), “A
Marcha de Radetzky” (Nova Vega, em Abril) e “Fuga Sem Fim”
(Sistema Solar, em Maio), obra relativamente à qual tentaremos
registar algumas ideias.
Natural
da Galícia Oriental, Joseph Roth contou com uma vida curta e sempre
a debater-se com as questões relacionadas com o desenraizamento, bem
como a influência da cultura judaica na Europa Central e de Leste e
também a própria identidade europeia.
O
autor ficou conhecido pelos seus contos, novelas, romances e ensaios
e em nenhum dos registos se pode dizer que se tratasse de um autor
menor, bem pelo contrário. Mergulhar na escrita de Joseph Roth é
vivermos o que de melhor a literatura produziu no século XX, não
esquecendo o reviver ou o reacender a importância de uma cultura que
constituiu parte da identidade europeia.
Herdeiro
da tradição e cultura judaicas, as obras de Joseph Roth decorrem
num perpétuo limbo entre a realidade e a fantasia, tendo uma forte
orientação ético-moral nas suas histórias. Poderíamos até
afirmar que algumas das narrativas do autor reflectem em certa medida
um carácter profético, não só no rumo que a Europa tomou após a
1ª Grande Guerra (1914-1918), mas também a sua própria vida. Em
última instância, algumas das interrogações que colocamos
actualmente em matéria de políticas que são levadas a cabo,
encontram-se de forma bem visível e até marcante nesta “Fuga Sem
Fim”.
Franz
Tunda é a figura central de “Fuga Sem Fim”, apresentando-se como
um personagem camaleónico atendendo à sua capacidade de
sobrevivência numa Europa assolada pela guerra. Primeiro-tenente do
exército austríaco, Franz Tunda é feito prisioneiro pelos Russos,
em 1916, conseguindo fugir, em 1919, com a ajuda de um polaco,
forjando a sua identidade com o nome de Baranowicz.
A
partir de então, Franz Tunda, com a ajuda do polaco, consegue
infiltrar-se na Rússia que, à data de debatia com a guerra civil,
sangrenta, que opunha burgueses (brancos) a bolcheviques (vermelhos),
numa época em que a revolução recebia as orientações e o comando
de Lenine.
Franz
Tunda envolve-se com a facção bolchevique e vê-se a defender uma
ideologia como nunca o fizera em Viena antes da guerra. Debate-se
pelo proletariado miserável que é continuamente esmagado pelos
burgueses. Tunda envolve-se com Natacha, uma mulher que vive a
revolução e a guerra civil de uma forma que transpõe os princípios
para a relação. “Como Tunda não lhe interessava como marido, era
escusado desprezá-lo. Não era outra coisa se não um camarada com
igualdade de direitos.” (p. 42) A par desta relação atípica,
Tunda deslocou-se para Baku, no Azerbaijão, a fim de exercer funções
num instituto científico.
Apesar
de os seus discursos serem inflamados e ser detentor de uma
capacidade persuasiva, Tunda “possuía mais energia vital do que a
revolução necessitava na altura.” (p. 67), talvez, em função
disso, tenha acabado por abandonar a Rússia. “No fundo, era um
europeu, um «individualista», como dizem as pessoas cultas. Ele
necessitava de relações complexas para viver a vida. Ele precisava
de uma atmosfera de mentiras intrincadas, de ideais falsos, de saúde
aparente, de mofo duradouro, de fantasmas pintados de vermelho, da
atmosfera dos cemitérios, que aparentam salões de baile, ou
fábricas, ou castelos, ou escolas, ou salões. Ele necessitava da
proximidade dos arranha-céus, cujo desmoronamento se adivinha e cuja
estabilidade está garantida para durar séculos. Ele era um «homem
moderno».” (p. 67)
Tunda
regressa à Europa, passando por Viena, Berlim e Paris, numa época
de crescimento económico, no pós-guerra, e com uma sociedade que
procura viver intensamente o tempo perdido, aproveitando as novas
tendências, fomentando, uma vez mais, a sociedade de consumo. É
neste intermezzo que Tunda se apercebe do oco que lhe pareceu a
ideologia por que se debateu, anteriormente, na Rússia, durante um
ano e meio. “Há uns dias, conheci uma mulher. É uma escritora e
comunista. Casou-se com um comunista romeno, igualmente um escritor,
que me dá a impressão de ser um indivíduo sem talento e estúpido,
mas que é suficientemente esperto para esconder a sua estupidez na
ideologia comunista e justificar a sua preguiça com a política.
Este casal vive de subsídios de um tio capitalista, um banqueiro, e
de artigos que escreve para jornais radicais. A mulher usa sapatos de
salto baixo e escarnece da sociedade que a alimenta.” (p. 105)
O
outro ponto com que Tunda se debate é o facto de não ter trabalho e
como tal, tem fracos rendimentos, mas a questão tem mais que ver com
a forma com que a sociedade se passou a organizar que nem sempre o
dinheiro advém do fruto do trabalho e, então, poderia ser um
parasita da sociedade porque poderia auferir uma boa maquia sem ter
necessidade de trabalhar em vez de passar a ser encarado como um
fantasma da sociedade. A passagem a este respeito é lapidar,
mantendo-se actual, à luz da sociedade que evoluiu até aos nossos
dias, passado quase um século após a edição do livro. “Além
disso, já é altura de eu ganhar alguma coisa. Nesta ordem mundial,
não é importante que eu trabalhe, mas é tanto mais necessário que
eu ganhe dinheiro. Um homem sem rendimento é como se fosse um homem
sem nome ou uma sombra sem corpo. É como se fosse um fantasma. Não
é nenhuma contradição ao que eu disse anteriormente. Não tenho
nenhum sentimento de culpa da minha inactividade, mas sim do facto de
a minha inactividade não me dar dinheiro, enquanto que a
inactividade de todos os outros é bem paga. O dinheiro em si concede
o direito de existir.” (p. 106)
Mas
o absurdo dos absurdos, é quando Tunda se apercebe, em Paris, no seu
regresso da Rússia, que ao contrário da ditadura do proletariado
que gradualmente se impunha naquela região do mundo, naquela que é
a capital do mundo civilizado, assiste-se precisamente ao contrário,
perseguem-se os trabalhadores, apercebendo-se que a riqueza se
encontra, afinal de contas, mal repartida. “Tunda ainda não
conhecia a Europa. Durante um ano e meio lutou por uma grande
revolução. Mas só aqui é que se lhe tornou claro que não se
faziam revoluções contra uma «bourgeoisie», mas sim contra
padeiros, empregados de mesa, contra pequenos comerciantes de
hortaliça, minúsculos talhantes e empregados de hotel sem poder.
Nunca
temera a pobreza, pois mal a sentira na pele. Mas na capital do mundo
europeu, donde emanam os pensamentos da liberdade e os seus cânticos,
viu que não se consegue nem sequer uma côdea do pão de borla. Os
mendigos têm os seus benfeitores muito bem determinados e de cada
coração caridoso a cuja porta batemos vem a resposta que é: Está
já ocupado!” (p. 130)
Mas
Joseph Roth vai mais longe no que concerne à sua visão ou antevisão
daquilo que se tornou a Europa, muito depois da 2ª Guerra Mundial,
até aos nossos dias. As ideias existem, muitas até, mas o que é
afinal a “cultura europeia” e a “comunidade europeia”? Quais
são os valores que subjazem à construção da Europa que, atendendo
a “Fuga Sem Fim” se reportaria ao 1º após-guerra? Mas podemos
colocar estas mesmas questões depois da experiência da constituição
da CEE/UE, no 2º após-guerra? Joseph Roth responde através de
Franz Tunda, com as seguintes palavras: “Os senhores querem (…)
manter uma comunidade europeia, mas para isso têm primeiro de
criá-la. Pois, essa comunidade não existe, caso contrário, ela
saberia por si só como manter-se. Parece-me duvidoso que seja
possível criar-se o que quer que seja.” (p. 125)
Em
jeito de conclusão, Franz Tunda conheceu de perto as duas realidades
que se opõem entre si, tendo ficado o mundo dividido política e
economicamente durante décadas. Franz Tunda acabou por não se
identificar com nenhuma das ideologias. “Não havia ninguém no
mundo inteiro que fosse tão supérfluo como ele.” (p. 151)
Texto da autoria de Jorge Navarro
Sem comentários:
Enviar um comentário