"A Filha do Leste" é o mais recente livro da espanhola Clara Usón (n. 1961) que lhe valeu em 2012 o Prémio Nacional da Crítica no seu país. O livro foi publicado no primeiro semestre em Portugal tendo sido bem acolhido no seio da crítica literária desde então.
Mais do que uma obra que tem como pano de fundo a guerra da Sérvia contra a Bósnia durante os primeiros anos da década de 90 do século passado, "A Filha do Leste" vai a fundo na questão complexa dos Balcãs procurando as raízes do "servianismo" que remonta à batalha do Kosovo que opôs sérvios e turcos, em 1389. Se por um lado esta célebre batalha, tantas vezes endeusada mediante a tendência política da Sérvia ao longo dos séculos, é apontada como o ponto de sustentação daquilo que mais tarde será apontado como as marcas culturais de identidade da Sérvia, por outro lado, essas mesmas marcas nada mais são do que uma forma velada de nacionalismo que ao longo da História contribuiu para opor diferentes etnias gerando conflitos sangrentos que tantas vidas ceifou sem que se tenha propriamente resolvido o problema da coexistência pacífica entre comunidades cultural e religiosamente diferentes.
"A Filha do Leste" inicia com a viagem de finalistas de Ana Mladić (filha de Ratko Mladić, conhecido pelo "carniceiro da Bósnia") a Moscovo com alguns colegas e amigos cujo périplo é descrito transversalmente ao longo de toda a obra à medida que vai sendo apresentada uma "galeria de heróis" sérvios que tiveram um papel importante e decisivo na guerra com a Bósnia levando à morte milhares de pessoas por razões meramente religiosas. Este desfile de "heróis" como Slobodan
Milošević, Radovan Karadžić, Ratko Mladić, entre outros, coincide precisamente com a identificação de indivíduos loucos, pérfidos, cruéis e assassinos que feriram de morte o coração da Europa no final
do século XX na sequência do desmoronamento da Jugoslávia.
Quando a Europa e o Mundo julgavam que não voltariam a repetir-se atos bárbaros e verdadeiramente inumanos à semelhança do que teve lugar durante a 2ª Guerra Mundial, eis que a "bomba" estala nos Balcãs meio século depois quando a Sérvia e a Croácia disputam entre si o território ocupado pela Bósnia-Herzegovina na tentativa de "limpar" o sangue turco (considerados pelos sérvios como sangue sérvio impuro) do território, levando a cabo o extermínio de vilas e aldeias bósnias através de uma chacina que só pode mesmo ser comparado ao genocídio de judeus por parte dos nazis (ou se recuarmos mais na História, à semelhança dos progroms realizados pela Inquisição em Portugal e Espanha), embora aqui fossem realizados em nome do "servianismo", vulgo nacionalismo ao extremo.
Ana Mladić é, pois, herdeira e crente numa tradição assente nos valores acima descritos para os quais o seu pai, Ratko Mladić era o seu expoente máximo, sendo um bom pai e um bom marido, um
exemplo a seguir para toda a Jugoslávia que então se desmoronava. "Ana sentia uma íntima alegria à ideia de que, ao cumprir as tradições, ao observar os rituais, estava a fazer a ponte com os seus antepassados, que pertencia a algo maior do que à sua pequena individualidade, à sua reduzida família: era uma gota de água no mar infinito da nação sérvia, uma gota indispensável, no entanto. A Ana Mladić morreria um dia: o servianismo não, e enquanto a nação sérvia subsistisse, alguma coisa de si sobreviveria." (p. 37)
A viagem de finalistas de Ana Mladić a Moscovo não corre conforme o esperado. Os dias em que era suposto divertir-se e conhecer a capital daquela que foi a URSS que também se desmoronara pouco tempo antes, em 1990, acabou por tornar-se um pesadelo na medida em que alguns dos seus colegas a confrontaram com aquilo que seria a verdadeira "face da guerra" que deflagrava há já tempo demasiado nos Balcãs e sem fim à vista, além de que de forma inusitada conheceu alguém que sem saber a verdadeira identidade de Ana Mladić a levou a confrontar-se com aquela que seria a outra face do seu pai e que não era propriamente a de uma pessoa dócil e terna como a que conhecia em
casa, em Belgrado.
Este confronto com a realidade levará Ana Mladić ao regressar a Belgrado a questionar toda a sua herança cultural, a sua própria identidade, suscitando dúvidas em relação ao futuro do seu país sobretudo numa altura em que a Bósnia estava na mira da Sérvia no intuito de "libertar" o solo sérvio, as aldeias sérvias das mãos dos bósnios (muçulmanos, turcos) nem que para isso se procedesse à prática dos genocídio. E neste contexto, há um excerto deveras interessante alusivo à natureza dúbia de Ratko Mladić, "O general bom vivia fascinado pelas abelhas e dedicava-se à apicultura nos (raros) momentos livres. O general mau estava mais interessado na antropologia, relacionada com a zoologia; concretamente, fascinava-o o curioso paralelismo que se manifesta entre o comportamento animal e o humano em determinadas circunstâncias. Do alto de uma colina sobranceira a Sarajevo, espiava através dos binóculos a multidão de habitantes que se moviam e se apressavam pelas ruas da cidade, nas rotinas diárias, aproveitando um cessar-fogo. «Correm como formigas!», observou, mas, talvez por falta de tempo (havia que aproveitar o factor surpresa da trégua), não se deteve a analisar com mais profundidade o fenómeno, antes deu imediatamente a ordem: «É a vez dos franco-
atiradores. Vão-se a eles! Disparem sobre as pessoas. Directamente sobre as pessoas!»" (p. 154)
Ana Mladić suicida-se então a 24 de Março de 1994, marcando para sempre a sua família, embora a (in)compreensível dor sentida por Ratko Mladić não o tenha demovido de estar por detrás do genocídio perpetrado a mais de 8000 civis, em Srebrenica, na Bósnia, em 1995, cujas descrições do acontecimento parecem ter sido tiradas de um filme de terror em que os homens perderam por completo a noção de humanidade. "As equipas de execução andavam acompanhadas por bulldozers que cavavam para onde se atiravam os cadáveres. Em três dias, as forças sérvias executaram oito mil bósnios, na sua maioria do sexo masculino, entre os quais crianças e adolescentes. Os executados no primeiro dia foram os que tiveram mais sorte; os outros ficaram encerrados, sem comida nem bebida, até chegar a vez deles. Nem todos morreram de um tiro na nuca. Houve uns tantos degolados, outros torturados antes de serem mortos e, por fim, outros, inevitavelmente, antes de morrer, obrigados a cavar as próprias sepulturas. Enterraram-nos em valas comuns que, meses mais tarde, exumariam,
trasladando os restos para uma segunda fossa, onde se misturariam com outros corpos, para dificultar uma possível investigação futura." (pp. 298-299)
Concluindo, Clara Usón traz para a literatura um tema da História Contemporânea que nos inquieta e do qual não saímos ilesos. "A Filha do Leste" é um romance que ao longo de toda a obra nos faz questionar como foi possível a concretização de tais atos ignominiosos depois de tudo o que aconteceu durante a 2ª Guerra Mundial? Creio que é essa efetivamente a questão que fica no ar na medida em que nós, como cidadãos, devemos estar permanentemente atentos aos atos dos políticos porque nunca sabemos se perante uma conjuntura de depressão económico-social de modo continuado não constituirá terreno fértil para o aparecimento de lobos disfarçados de cordeiros que tentarão sem olhar a meios retirar os direitos dos cidadãos despojando-os da sua identidade se for caso disso.
Parafraseando Danilo Kiš «O nacionalismo é, na sua essência, uma paranóia, uma paranóia individual e colectiva. Como paranóia colectiva, é fruto da inveja e do medo, e sobretudo o resultado da perda da consciência individual levadas ao paroxismo.» (p. 262)
Texto elaborado por Jorge Navarro
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