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quinta-feira, 12 de junho de 2014

A Escolha do Jorge: "Tempo de Vida"



A edição de "Tempo de Vida" do madrileno Marcos Giralt Torrente coincidiu precisamente com a participação do escritor na Noite da Literatura Europeia que teve lugar no passado sábado em Lisboa.

Quem teve oportunidade de ouvir excertos de "Tempo de Vida" tanto em castelhano como em português no decorrer desse evento que no caso específico deste autor aconteceu no Pavilhão Chinês, certamente terá ficado estarrecido com as passagens verdadeiramente suculentas e não menos repletas de tristeza e dor que vêm na sequência da perda do seu pai.

O que leva um escritor escrever sobre si e a sua família? O que deve incluir nos relatos e o que deve excluir? Que critérios utiliza para diferenciar aquilo que é essencial do acessório? De que modo uma história que poderia ser ficção para o leitor entra no registo literário? Será a atitude do leitor diferente quando está perante um livro de cariz autobiográfico?

Logo no início do livro, Marcos Giralt Torrente responde a algumas destas questões dado que nas suas várias obras publicadas, de uma forma ou de outra, acaba por se vingar do seu pai (literariamente falando) em virtude de ao longo da sua vida ter tido um relacionamento tanto difícil como complexo
e nesse sentido, a escrita constitui em certa medida uma forma de ajustar contas com o progenitor, exercendo igualmente um papel terapêutico.

De qualquer modo, em "Tempo de Vida" Marcos Giralt Torrente apresenta-nos um romance autobiográfico centrando a narrativa nesse relacionamento complexo pai-filho sem a necessidade de recorrer a personagens ficcionais e a enredos inventados. Aqui, os personagens são de carne e osso em que foram definidas as doses certas de pormenores sem que haja a necessidade de entrar em questões demasiado íntimas e despropositadas, mas criando um ambiente o suficientemente intimista não só para se expor à vontade, envolvendo de igual modo o leitor ao longo da narrativa.

"Tempo de Vida" tem o epicentro no acompanhamento que Marcos Giralt Torrente faz ao seu pai a partir do momento em que lhe é diagnosticada uma doença do foro oncológico. De exame em exame, seguido de uma operação e sessões de quimioterapia, Marcos Giralt Torrente vai refletindo sobre a
necessidade de apaziguar divergências ao nível de relacionamento quando se apercebe gradualmente
que, na verdade, entre pai e filho são mais as semelhanças que os une do que propriamente as diferenças. É neste "Tempo de Vida" que pai e filho não só sentem em pleno a verdadeira relação e cumplicidade tentando recuperar anos a fio de tensão e encontros comedidos e calculados, mas é também nesta fase da doença do pai do autor que o pai estando mais vulnerável, o filho assume o papel de protetor como se fosse pai de seu pai, algo que acontece naturalmente.

Numa escrita intensa e envolvente, Marcos Giralt Torrente agarra-nos desde a primeira página e sem ser lamechas estabelece o meio-termo entre o modo de se expor a si e a outros elementos da sua família mais próxima e o misto de sentimentos que vão desfilando ao longo da obra. Em suma, o autor em "Tempo de Vida" faz-nos recordar que todos nós, homens e mulheres, para além de sermos ossos e sangue, somos igualmente muito frágeis repletos de sentimentos e que nem sempre sabemos qual a melhor forma de lidarmos uns com os outros mesmo aqueles com quem lidamos durante toda a vida, mesmo quando um pai aquilo que tenta fazer é ser o melhor pai do mundo e um filho que mesmo já homem tenta na medida do possível sentir-se sempre filho de modo a perdurar essa relação
ancestral e duradoura.

Em jeito de conclusão, os leitores ficarão inebriados com esta ficção-realidade apresentada em "Tempo de Vida" sendo levados a refletir sobre o relacionamento que mantêm com as pessoas mais próximas de si, assim como o facto de que esta é a vida e o tempo que têm para serem felizes valorizando aquilo que pode ser considerado um milagre, o milagre da vida com o nascimento de uma criança que nos permite acreditar num amanhã melhor e mais feliz.

Excertos:

"Claro que não são as únicas [parecenças] que partilhávamos. À parte as que usei na ficção e o físico cada vez mais parecido, temos mais. Adquiridas e herdadas. Ambos melancólicos, ambos coléricos, ambos tímidos, ambos inseguros, ambos sentimentais, ambos cépticos, ambos pessimistas, ambos solitários, ambos avessos aos adventícios, aos impostores; ambos sóbrios, ambos um pouco exibicionistas, ambos estóicos, ambos sonhadores, ambos carinhosos, ambos masculinos, ambos
heterossexuais, ambos secretamente femininos, ambos vulneráveis, ambos compassivos, ambos obsessivos, ambos divididos, ambos calados, ambos amordaçados, desconcertados pela consciência excessiva das nossas limitações." (p. 109)

"A única coisa que queria era ter mais dele, a única coisa que queria era estar mais com ele.
Porque gostava dele, porque precisava dele, porque desde muito pequeno me recordo de fazer minhas as suas opiniões, porque, se sei viajar, se sei cozinhar, se sei pendurar um quadro, se sei consertar um candeeiro, se sei entrar num antiquário ou numa loja de móveis e distinguir o que é bom do que é falso, se sei que o mundo é redondo e que a natureza (a natureza, isso também lhe devo) não fez melhores umas línguas que outras, uns países que outros, umas religiões que outras, se sei o mal que é não nos elevarmos acima da nossa condição, devo-o em parte a ele." (p. 112)

"(…) Quando, passada meia gora, a minha mulher e eu entrámos no quarto, desta vez com um
objetivo prático, que era mudá-lo de posição, o meu pai já não existia. É a principal coisa que recordo. A sensação de ele ter partido. Naturalmente houve choros, comentários desconexos, busca apressada de um espelho, muitos nervos e por fim, quando já assumíamos a situação, abracei-me a ele e comecei a falar como se ainda pudesse ouvir-me. No entanto, em todo este tempo, assim que entrei no quarto não deixei de ter presente, de sentir dolorosamente, porque se tratava de uma ausência física, que o meu pai já não estava ali. O corpo jacente na cama a que me abraçava já não era o meu pai. O meu pai tinha desaparecido, tinha ido para nenhures, para o lugar onde a memória se rende e desaparece. É o único momento da minha vida em que o meu esperançoso agnosticismo se deixou vencer pela aspereza do ateísmo." (p. 148)

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