Isto de ter que escrever sobre mim para dizer porque escrevo sabe-me a desassossego, a exercício de ventríloquo, a procurar um espelho que me devolva alguns fragmentos da memória.
Alguns farrapos dessa memória já devem chegar.
Vamos lá.
Liceu Camões, idos de 1957, onze anos de idade a frequentar o 2º ano, professor de português Vergílio Ferreira, tema da redação “O Cinzento”. Escrevi sem que hoje, me lembre de qualquer naco daquela prosa imberbe e necessariamente infantil. Espanto para esta alma que sempre se ficou pelos esconsos da timidez. No outro dia disse o mestre – “Foi a melhor redação. Afonso leia em alto para os outros ouvirem.” Só me lembro que gaguejei e que os óculos se embaciaram.
Foi ai que tudo começou, diz-me o diabo ou o anjo vadio que cá por dentro andam neste calcorrear anos e anos e que nunca me largaram como improváveis companheiros de jornada.
Possivelmente, nesse estrelar momento, foi-me dado a conhecer o universo que é a palavra, esse sortilégio que a humanidade inventou para, num labirinto de dizeres e de falares podermos dizer e falar com o outro sobre um outro que somos nós.
De certeza que foi assim. Hoje sei. E assim se fez uma paixão.
A palavra.
Essa paixão. Porque escrever, mesmo não escrevendo, é praticar a religião da palavra, desbravando-a, dilacerando-a, comungando-a, exorcizando-a, afagando-a, conhecendo-a, desconhecendo-a, amando-a, fazendo com que ela seja, ao mesmo tempo um meio e um fim, para que nós possamos dizermo-nos, inventarmo-nos, construirmo-nos ou destruirmo-nos no texto para que os outros, acariciando a palavra escrita, possam apoderar-se dela, reinventá-la e que ela lhes fale à inteligência dos afetos no silêncio do que queremos que ela lhes diga.
O resto foi depois andar por ai, vivendo o isto e o aquilo que foi a vida para, agora, mais velho e vazio, ainda tentar ser isto ou aquilo, retirando da “gaveta dos assombros” onde fui colecionando palavras, sentimentos, mortes, impossibilidades, amores, sortilégios de andar ao pé-coxinho mesmo com os cabelos a ralarem-se de branquidão para escrever coisas que mesmo que aos outros nada possam dizer a mim me fazem sofrer na convicção de ter que as dizer.
É esse o sortilégio da escrita.
Hoje um escritor é um tipo importante, com obra, com opinião, com vastos horizontes, que ganha prémios, com um património de público assíduo e pretextos para se apoderar da alma humana e dilacera-la em histórias que nos arrebatam.
Por isso eu não sou um escritor. Porque não sou nada disso. Continuo a gaguejar as palavras que vou escrevendo e os óculos a embicarem-se com as lagrimas de as ter escrito.
Por isso não sou escritor. Pronto. Esta dito. De importância só tenho esta solidão que se vai vingando em amarguradas palavras. E depois salvo-me quando as invento. As palavras.
É esta a minha redenção.
Escrevi muito para a tal “gaveta dos assombros” porque o assombro da vida me obrigou ao silêncio da escrita, à solidão da palavra, à revolta de ter que dizer, calando-me, que a vida que queremos é sempre a outra que está na margem onde não estamos.
Perdidos, porque o mundo é uma confusão de veredas e caminhos encruzilhados de que só damos por isso, quando percorridos todos os desertos pelos quais, incautos nos aventurámos porque, mesmo à surrelfa, sempre em nós mandaram quem sempre deteve o poder de jogar com as marionetes que somos.
Uma guerra, um ter ido e um ter voltado tão diferente do que fui. Tanta tristeza. Colaboração em jornais, crítica de cinema, um livro feito mas rejeitado por uma editora que dizia”… a voz do autor ainda não é suficientemente audível…”, amarguras várias quando pensava que a liberdade era finalmente.
Assim;
a estabilidade de um emprego porque a vida a isso recomendava e aquela “gaveta dos assombros” para onde iam deitando cadáveres de palavras que julgava importantes.
Profissionalmente um sucesso acabada que foi agora a vida ativa. Da “gaveta”, ainda pouco ou nada sei. O passado é sempre uma dor. Estão lá os mortos todos, o desperdício do que fomos o sobejo do que somos.
Aqui chegado, agora, no limiar de um tempo de redenção fui abrindo a “gaveta dos assombros”, mansamente para que os diabos e os anjos não acordassem e, por dever de ofício saiu em Setembro de 2011, “Descubra o Líder que há em si” publicado pelos Livro d´Hoje – LeYa. Livro em que procurei fazer, a custo, fazer a ponte entre a componente técnica que o assunto merecia e aquilo que o brilho das pessoas, porque humanas, me merecem. Depois ponto final nesse peditório porque de empresas foram quarenta e sete anos já vividos.
A ficção era o caminho. A “gaveta” mais os seus assombrados assombros assim mo diziam. Mas a poesia e o texto poético não se púbica e ninguém lê mesmo que os temas sejam “murros no estomago”. O mercado e as suas leis. Só conhecidos. Só quem já tem “nome” como se nunca tivéssemos deixado de ser um país de várias aristocracias.
Arriscando-me a acumular o desencanto, publiquei, em finais de 2011 na Chiado Editora um livro de poemas “A Voz das Pedras” que anda por ai, já lido por alguns que dizem ser obra de jeito e à espera que outros tropecem no que lá é dito.
Em Novembro deste ano lancei, também na Chiado Editora “A Indiferença é morrer com a solidão aos pés da cama”. Espero que o encontrem e que o leiam porque sofri muito ao escrevê-lo. Digo “…morrem velhos neste país velho / de velhos / na indiferença de nem se dar por isso…”
O futuro; tenho na LeYa à espera de publicação “O Muro – Tanto tempo teve o tempo até aqui chegarmos”. Quando sairá? Quando o tempo tiver o tempo de lá chegar.
E é assim…
Afonso Valente Batista
Cris, que belo texto!
ResponderEliminarAinda mais de alguém que teve por Mestre Vergílio Ferreira que, como professor, dizem ter sido exigente e muito taciturno. Se aos doze o Mestre dizia que escrevia bem é porque a grande sensibilidade já transparecia no texto.