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quinta-feira, 30 de agosto de 2018

A Escolha do Jorge: “Uma Manhã Perdida”



“Protege-nos, por conseguinte, uma inexorável lei do progresso ou andamos permanentemente num círculo?” 
(p. 166)

A questão colocada acima pode servir de mote para este romance “Uma Manhã Perdida” da romena Gabriela Adameșteanu (n. 1942), publicado pela primeira vez em 1984, nos últimos anos da presidência de Nicolae Ceaușescu (1918-1989).

Uma longa narrativa centrada na personagem da septuagenária Vica Delcă que revisita grande parte do século XX da História da Roménia, desde as vésperas da 1ª Guerra Mundial (1914-1918) até à década de 70, sensivelmente.


Vica Delcă é uma uma sobrevivente e uma lutadora, um exemplo de resiliência no contexto da História complexa do seu país. Órfã desde os 11 anos, Vica tomou a responsabilidade de criar os seus irmãos mais novos quando ainda mal conseguia tomar conta de si. Ajudada por vizinhos e amigos, Vica relata-nos inúmeras histórias de dificuldades económicas, lutando a todo o custo para que ela e os irmãos não morressem à fome. Os relatos de Vica adquirem um tom que, por vezes, nos magoa moralmente, na medida em que a palavra «fome» é a que mais se repete ao longo de “Uma Manhã Perdida”.

A fome crónica de Vica é tão-somente um reflexo da fome que se faz sentir em toda a Bucareste e na Roménia em geral ao longo do século XX. Antes, durante e depois das duas guerras mundiais, não importando qual o regime político vigente naquele país do Leste europeu, esmagou por completo toda uma população que se tornava cada vez mais pobre e triste, num país cinzento marcado continuamente, como se tornasse uma espécie de destino ou sina do povo romeno. “Portanto, uma direção infeliz, para a qual é fácil levar este povo, enterrando-o cada vez mais na corrupção e na pobreza.” (p. 148)

Vica Delcă sai de casa, numa manhã, bem cedo, para visitar a sua cunhada e o sobrinho, num outro bairro de Bucareste. No decurso do trajecto, ouvimos o pensamento de Vica que nos vai relatando sobre a marido, com pouca mobilidade, a perda do irmão, a forma como vive a cunhada e o sobrinho que ao visitá-los se apercebe que têm muito pouco para comer, a visita às madames, na expressão do sobrinho Gelu, para quem trabalhou fazendo pequenos trabalhos de modista, muitas vezes passajando e remendando tecidos envelhecidos, quase sem préstimo para que as senhoras, aparentemente com mais dinheiro possam vestir algo diferente, marcando ainda a diferença numa sociedade decadente.

Antes de sair de casa, Vica coloca em sacos todo um conjunto de tralha velha que considera poder vir a servir àqueles que visita. O certo é que numa sociedade cinzenta, marcada pela pobreza e pela fome, as pessoas contentam-se e sujeitam-se a tudo o que lhes provém.

As dificuldades de Vica e a fome são tais que os seus pensamentos se repetem inúmeras vezes à medida que surgem os vários interlocutores, como por exemplo: “(…) Vivem duas alminhas com apenas seiscentos lei, e a renda da casa, e a luz e a televisão.” (p. 69)

Durante as suas visitas, Vica está sempre com fome, esperando que lhe ofereçam uma fatia de pão ou algum dinheiro, como no seguinte excerto:
“- Toma lá, Vica – dizia-lhe a Madame Ioaniu -, se calhar faz-te falta…
- Dê cá – respondia ela -, dê cá, que eu sou o seu balde do lixo…” (p. 60)

O mesmo acontece em casa da cunhada que aproveita o pão velho cujo destino é o lixo ao que Vica se antecipa dizendo:
“- Porquê deitá-lo fora? – diz ela. – Dá-mo cá, que eu sou o teu balde de lixo…
O Gelu farta-se de rir quando a ouve! E ela leva o pão para casa, faz pão ralado, põe no chá, molha-o e come-o à colherada. Ao menos isso ganha com a cunhada.” (p. 37)

São muitas as formas usadas por Vica e a população em geral enganar a fome, como as descritas acima. Vica deambula pela cidade durante um dia inteiro e acabamos por perceber que sai de casa porque considera que tem de ajudar os outros, embora no seu íntimo tente mendigar de porta em porta no sentido de enganar a fome.

Entre recordações e humilhações, Vica conclui que perdeu o seu tempo. Percorre Bucareste de uma ponta à outra para receber uma fatia de pão e cinquenta lei, uma espécie de complemento de reforma, oferecida por Ivona em memória da madame Ioaniu, sua mãe, do tempo que Vica fazia os seus trabalhos de modista.

As histórias que giram em torno dos cinquenta lei, o dinheiro que tanta falta faz a Vica e ao seu marido, mas que Ivona, tendo com o marido uma boa pensão, acabamos por perceber que também passam dificuldades, não esquecendo o facto de o seu filho se encontrar exilado em França.

Este jogo entre as palavras verbalizadas e o pensamento é um “tour de force” em relação à mesquinhez e pequenos ódios e raivas que, no fundo, somente reflectem o ambiente cinzento vivido nos dias da ditadura que torna as pessoas medrosas, relegando-as para a sua solidão, numa época em que o regime transformava cada cidadão num potencial delator.

"Nós, bem intencionados, generosos, idealistas, não temos nem nunca teremos ao nosso dispor mais do que as palavras! Por isso acontece com tanta frequência darmos por nós impotentes e sozinhos, e, como se sabe, a solidão traz consigo o desejo egoísta de nos pouparmos e o medo..." (p. 278)

A narrativa avança muito lentamente ao longo de um dia que afinal se pretende que passe rápido para que não se faça nada novamente. É uma espécie de morte lenta em que todas as pessoas estão anestesiadas. É esta cadência do tempo asfixiante que marca as rotinas diárias sem sentido, de uma sociedade sem sentido, de um país sem sentido e sem rumo. Perante esta conclusão de perda de tempo, diz Vica a dada altura do dia: “Eu é que sou parva, em vez de ficar na minha casinha onde não me falta nada, fiz-me à rua só para ficar um pacote de nervos. Quando penso no caminho que inda tenho de correr para voltar a casa, nem me apetece levantar daqui da poltrona. Mas tenho de me levantar! Ao menos que coma um bocadinho de pão!” (p. 127)

A indiferença que as pessoas sentem umas pelas outras é outra das ideias bem vincadas nesta obra. Ninguém vale nada, ninguém tem qualquer préstimo, perderam-se os valores e até as relações amorosas esfriam. Acalentam-se ódios, guerrinhas e traições entre as pessoas que fingem apreço entre si, mas surgida a oportunidade surgem momentos desta natureza: “Porque não ficas em casa, hem? Anda a morte à tua procura e tu à nora pela cidade – diz o guarda-freio.” (p. 48)

É esta imagem de pessoas alucinadas e aparvalhadas por uma vivência sem sentido numa Bucareste estranha e que a todos engole para um precipício sem fundo onde se desenrola “Uma Manhã Perdida” de Gabriela Adameșteanu.

Se por um lado chegamos a rir com as palavras de Vica Delcă, por outro, ficamos incomodados com a pobreza e a corrupção vividas na Roménia, como se se tratasse da sina do país. É esta ideia de quando é que isto tem um fim que mais parece o início de algo igualmente mau, tenebroso e ainda mais cinzento, um funesto destino reservado àquelas gentes. “(…) Tencionava perguntar-lhe, meu caro, se já viu um povo europeu tão pouco confiante em si próprio. Arriscava-me até a dizer mais: um povo que se despreze a si próprio?” (p. 299)

Não raras vezes, as passagens de “Uma Manhã Perdida” têm uma forte correspondência com a História de Portugal, em especial os anos da ditadura e mesmo com a passagem para a democracia, acabamos por perceber que há tanto de Roménia em Portugal, assim como a Vica Delcă é somente uma entre milhares e milhares de portugueses que, embora vivam em liberdade, nem sempre têm consciência dos agrilhões à sua volta.

Excertos:
“(…) Enquanto a vida política e a social andarem normalmente, e tu fores um ser normal, sem sombra de idealismo, então podes ter a ilusão da tua vivência isolada. Mas não passa disso mesmo, duma mera ilusão, em que é raro caírem aqueles que trabalham para construir a cultura de um povo. Porque o primeiro resultado da cultura é o cimentar relações de solidariedade – na horizontal, com os membros da sociedade que lhe é contemporânea, e na vertical, com as gerações anteriores. Portanto, mesmo aqueles que trabalham com sinceridade para edificar a cultura de um povo, mesmo que pensem neles próprios como individualidades autónomas, como se fossem, assim, o umbigo do universo – isso mesmo! -, não podem deixar de sentir, pelo menos de quando em vez, que pertencem a um organismo unitário. E em momentos como parece ser o que vivemos presentemente, quando os interesses coletivos começam a passar para a primeira linha, em tais momentos difíceis, quem for de boa-fé, vai descobrir que é impossível separar o seu destino do dos outros…” (p. 154)

“- Porque neste país, meus caros, as pessoas parece que já nasceram cansadas e resignadas, como se tivessem vivido outras tantas vidas difíceis e desgostosas, e desistiram há muito de lutar contra o mal todo-poderoso. E a desordem, o caráter provisório de tudo, o primitivismo multiplicam-se espontaneamente… Como os micróbios no meio do pó… Existem no ar, qual fermento da desordem…
- Como uma enzima – ri o convidado.
- Como uma enzima, se quiser – concede o professor. – Um micróbio todo-poderoso da corrupção, do caos, do trabalho feito em cima do joelho. Os males de que se queixava o meu pai e dos quais nem nós parámos de nos queixar. E tudo junto forma essa formidável inércia em que as energias ficam presas, pervertidas e se afogam.” (p. 281)

Texto da autoria de Jorge Navarro

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