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sexta-feira, 18 de maio de 2018

A Escolha do Jorge: “De Volta (aos Contos)”



“E os cravos, também os esquecemos? Ou desistimos deles?” (p. 144)

Este livro de contos de Filomena Marona Beja é uma agradável surpresa editorial da Parsifal neste primeiro semestre de 2018. A autora de “O Eléctrico 16”, “Franceses, Marinheiros e Republicanos”, “Um Rasto de Alfazema”, “A Avenida do Príncipe Perfeito”, entre outras obras, está de regresso com quinze contos originais que, no seu conjunto, consagram a autora como um dos nomes mais significativos das letras portuguesas das duas últimas décadas.

Num estilo muito próprio, contido, mas com espaço para o leitor ser levado a concretizar a ideia, Filomena Marona Beja brinca com as palavras, ao mesmo tempo que consegue ser irónica, divertida, cáustica e crítica face às injustiças sociais que não escapam ao seu olhar.

À semelhança dos romances e novelas publicados anteriormente, este livro de contos apresenta histórias todas elas devidamente contextualizadas num dado tempo e espaço da História de Portugal. É imperativo dar voz à massa anónima, personagens que os leitores tantas vezes se revêem graças às vicissitudes do quotidiano e da vida em geral.

A linguagem precisa é uma das características da escrita de Filomena Marona Beja, o recurso a termos e a expressões já caídas em desuso, quase numa tentativa de recuperar a nostalgia de outros tempos passados e de outras gerações.

A passagem do Estado Novo à instauração da democracia continua a marcar um dos cenários destes contos. As dificuldades económicas, a pobreza, a mesquinhez de décadas de um país fechado sobre si próprio e a passagem à liberdade e às liberdades estão, regra geral, presentes nas obras da escritora.

Nos contos, e porque falamos da narrativa breve, há espaço para abordar várias temáticas que são preocupações da sociedade contemporânea e que, conhecendo a liberdade, vivendo em liberdade, continua ainda agarrada a preconceitos que a condiciona.

Estes contos trazidos por Filomena Marona Beja contribuem, no seu conjunto, para fazermos uma reflexão sobre o que é, afinal, a sociedade moderna. Terminada a leitura, o leitor é levado a concluir que a mentalidade, os hábitos e os costumes não acompanham o desenvolvimento tecnológico. Mas resta-nos a esperança. A esperança de viver uma vida melhor em que não necessitamos de lutar pelo que é essencial e evidente. A esperança de compreender, com o passar dos anos, que a vida melhorou e que todas as lutas valeram a pena. Igualdade de género, racismo ou a crise dos últimos anos e as suas consequências são alguns dos temas presentes nestes contos.

Liberdade e amor são dois dos grandes enfoques na escrita de Filomena Marona Beja. E o leitor termina sempre as obras da autora num estado de melancolia porque é chamado a concluir pensamentos e a reflectir sobre as incertezas da sua vida, bem como nos desafios do país.

Alguns destes contos têm como pano de fundo o arquipélago dos Açores que a autora conhece com propriedade e, percebemos ao ler, que Filomena Marona Beja capta a passagem do tempo ao sabor das ondas do mar do arquipélago expressos numa linguagem quase poética contando histórias semelhantes às grandes lendas da história da literatura.

“De Volta (aos Contos)” apresenta uma lufada de ar fresco no panorama editorial português, além de afirmar a escritora como uma boa contista e romancista que, de resto, já tinha dado inúmeras provas.

Excertos:
“Tirou as sapatilhas e, por momentos, ficou com elas na mão. Desembaraçou-se depois das peúgas. T-shirt, jeans, boxers.
Foi até ela e agarrou-a pelo cabelo. Beijou-a, fazendo-lhe sentir a barba, a língua, os dentes. Toda a dureza do seu corpo.
Depois levou-lhe a cabeça até à água. Fê-la dobrar-se. Megulhar.
Ela debatia-se.
Debateu-se. Ainda conseguiu levantar os braços.
Tony não cedeu.
Quando a sentiu inerte, enlaçou-a contra si. Nadou para o largo.
Levou-os a corrente sul.
A invencível corrente que passa entre as Ilhas. E arrasta para a costa de África os restos de todos os naufrágios.” (pp. 14-15)

“«Mas cheguem-se cá! Eu tenho soluções para tudo…»
VOTEM EM MIM!
Passaria a haver casas para as famílias pobres. Mais médicos. Melhor ensino, incluindo universidades para quem quisesse chegar a doutor. E finalmente: sucesso!
«Se eu ganhar…»
Todos teriam SUCESSO!
VOTEM EM MIM!
«E eu caí na esparrela.»

Logo de seguida, a névoa.
«Uns tipos sinistros que aí vinham mandavam o gajo cortar nos ordenados e nas pensões. Ele cortava. Mandavam subir os impostos. Ele subia…»
Quem comprava deixou de comprar. Quem tinha qualquer coisa para o dia-a-dia deixou de ter.
E para quê os artistas? Para quê os criativos?
Fecharam-se livrarias, teatros, cinemas.
«E o meu patrão? O que haveria no seu empreendimento que ele pudesse cortar?...?
A publicidade.
«Ou seja: eu.»” (pp. 32-33)

Texto da autoria de Jorge Navarro

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